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28/01/2014

O Vazio da Mulher e a Toxicomania


Denise Machado


Quando recebi o e-mail sobre as Jornadas 2011 da EBP – São Paulo cujo tema foi “O Gozo Feminino no século XXI” no início de setembro de 2011, havia iniciado recentemente os meus estudos sobre a toxicomania e me veio uma pergunta: Há alguma especificidade na mulher com relação à toxicomania?

Através do “passeio” por diversos textos de autores que tratam o assunto, concluí que como a mulher é “indecifrável” e cada mulher é única, não há total clareza nas respostas, mas podemos perceber algumas diferenças que podem nos auxiliar na clínica, sem deixar que a direção do tratamento do analista siga o mesmo curso que em qualquer outra clínica.



Antes de tratar a questão específica da mulher, gostaria mencionar alguns aspectos que permeiam o universo desse grupo rotulado pela da ciência como toxicômano.

O Discurso da Ciência e do Capitalismo

Nossa época está marcada pelo discurso da ciência e do capitalismo onde a responsabilidade do sujeito e o inconsciente são praticamente desconsiderados.

A ciência opera como um verdadeiro absoluto onde há uma segregação e rotulagem. Para a medicina o sintoma é sinal de doença. Ao estabelecer a classe toxicômanos formata-se um grupo onde é abolida a diferença e não se leva em conta a singularidade do sujeito. Quando recebe rótulo toxicômano, com todos os adjetivos que o discurso da ciência contempla, o sujeito irá depender do saber de um médico, um especialista para sua “cura” (ele é um doente e para a sociedade, por vezes, um transgressor) que o coloca num papel passivo e minimiza sua responsabilidade por seus atos e seus gozos. Exclui-se da estrutura o sujeito do inconsciente. Em vários casos prescrevem-se drogas lícitas para tratamento de pacientes adictos de drogas ilícitas ou do álcool, buscando-se resultados rápidos, mas não o cerne da questão. “Tomar a pílula” é um grande programa de prescrição terapêutica do presente (Tarrab, 2006).

Paralelamente temos o discurso do capitalismo cuja ordem é consuma, consuma a qualquer preço. Goze! Goze agora! Tudo você pode! Você pode alcançar tudo que deseja basta querer (e se não alcançou é porque você não soube agir ou se planejar corretamente para atingir seu objetivo.

A utilização da droga não é contemporânea, mas seu uso atual atende à demanda do capitalismo que é a do gozo a qualquer custo e também do seu contraponto: eu não vou dar conta de tudo isso que tenho a fazer, consumir, atingir, etc. Tarrab (1998) adverte: “O discurso do capitalismo realiza sua operação de minimizar a divisão subjetiva do lado do objeto. O reino do consumo é uma operação complexa em que o sujeito é reduzido ao consumidor, remanejando a divisão subjetiva no sentido de uma circunstância de um encontro com os objetos de consumo”.

A Psicanálise e a Toxicomania

Para a psicanálise a toxicomania não é um sintoma, pois não se configura a formação de compromisso e sim uma operação sobre a estrutura o que Tarrab (1998) chamou de “operação toxicômana”, uma operação que precede de uma recusa do Outro, não se mostra articulada e há procura de um gozo por um caminho que não é sexual, ainda que esteja orientada ao próprio corpo. Ela esvazia a significação. Há uma ruptura com o gozo fálico. Segundo Santiago (2001) a rigor o ato toxicomaníaco não transgride nada, senão o casamento que, um dia, ele contraiu com o falo. O autor afirma que Lacan tomou como ponto de partida a hipótese freudiana da droga como método capaz de atenuar os efeitos do gozo, que afetam o sujeito em sua dor de existir. Esse retorno do Outro tomado pela vertente do Outro gozador aparece na neurose sob a forma de angústia. A toxicomania tem uma especificidade: é uma operação que permite romper o casamento com o "faz-pipi". A droga não é simplesmente o que faz o sujeito gozar. Ao contrário, trata-se de um dispositivo que visa, de modo provisório e precário, a barrar a incidência da dimensão nociva e deletéria do gozo. Cala-se o desejo e a angústia usando a droga.

A vontade do toxicômano de anular o registro da troca simbólica com o Outro se repercute na supressão do “eu penso” em benefício do “eu sou” (Santiago, 2001).

Para Tarrab (2006) a grande boca que deve preocupar os analistas não é a dos consumidores, que é correlata à queda do Pai; é a grande boca do desejo materno cujas consequências são sempre devastadoras.

A Mulher e a Toxicomania

Segundo Pacheco (2007) as mulheres dependentes químicas são tomadas como subgrupo específico e as razões que justificam tal posicionamento são curiosas: baixa autoestima, frequência de sintomas de ansiedade e depressão, maior probabilidade de terem um companheiro também dependente químico e maior probabilidade de terem sido física ou sexualmente abusadas na infância. Outras parecem mais valiosas para a interpretação psicanalítica: preocupação com o relacionamento interpessoal, com criação de uma identidade independente e com a maternidade. Algumas pesquisas ainda apontam o uso das drogas e do álcool relacionado a uma tentativa de neutralizar os sentimentos depressivos.

A autora ressalta que a leitura desses dados certamente são escritos em uma língua “estrangeira” à psicanálise e retoma então a frase de Lacan a respeito do rompimento do casamento com o falo propiciado pela droga. Acrescenta que só é possível romper algo que esteja estabelecido e, no que tange à mulher, teríamos que questionar as consequências específicas do divórcio com o falo que a droga proporciona, já que o casamento da mulher com o falo é, desde sempre, um “casamento aberto”. A mulher não é “toda fálica” e isso faz com que a modalidade de suplência em relação à desproporção sexual seja diversa no homem e na mulher. ]

Lacan (seminário 20) utilizou o termo devastação seja para falar da relação da mulher com sua mãe (relacionada ao enigma estabelecido pelo gozo feminino da mãe) e na parceria amorosa com um homem. Diferencia que se a mulher para um homem é um sintoma, um homem para uma mulher pode ser devastação. O sintoma diferentemente da devastação é um sofrimento localizado e limitado. A devastação está no campo do sem limite e das manifestações não localizadas.

Drummond (2006) comenta que a devastação pode ser lida como uma dificuldade feminina estrutural própria à inexistência do todo feminino. Tal como diz Miller (2003) “uma mulher tem sempre um ponto de devastação, que não há relação com a lei que possa poupá-la disso, no mesmo sentido que Lacan dizia que a verdadeira mulher tem sempre algo de perdida”.

Soler (1995) remete à Lacan quando denomina devastação para reforçar o tamanho do domínio do Outro pelo sujeito: um sujeito a mercê da vontade do outro. Ela também chamará a tendência à submissão de “alienação do amor” que diz ser quase “natural” nas mulheres onde não existem limites nas concessões que estão prontas a fazer a um homem: de seu corpo, de seus bens, de sua alma.

Quando abordada questão da toxicomania na mulher, geralmente os autores levam em conta a devastação que está no registro do sem limites, assim como na adição das drogas, e há uma correlação entre elas.

Segundo Pacheco (2007) a droga na atualidade pode ser utilizada no sentido de ajudar o casamento da via mascarada, como por exemplo, nos casos de utilização de drogas para emagrecer, moldando-se ao falo magro (supostamente desejado pelo homem) e nos casos em que a mulher “vai no embalo” do parceiro usuário para não decepcioná-lo. Outra vertente da sua utilização é para fazer suplência ao divórcio com o falo, gerado pela queda da máscara, do lugar que se supunha ocupar para o Outro. A perda do amor, o abandono, a identificação com “alguma coisa ausente” parece revelar naquilo que se apresenta nas pesquisas como tentativa da anular a dor, nem que seja via morte.

Nunes (2010) destaca a cantora Amy Jade Winehouse que exibe um discurso social sobre o abuso nas drogas na atualidade: “O amor erotomaníaco da mulher e sua necessidade do homem amado, para situá-la em seu gozo ilimitado, a “depressão” advinda da dor pela perda dessa parceria amorosa com seu parceiro-devastação, o refúgio de seu mal estar no álcool e outras drogas são temas cantados e também vividos em sua vida”.

Para Tarrab (2001) a devastação na vida da mulher só poderá ser resgatada através pela via do semblante, do amor, aquela que visa o sujeito. Para o autor é preciso produzir um corte em seu funcionamento para que, aquilo que realiza como gozo, enrede-se nos poucos fiapos do gozo sentido, oferecendo uma nova orientação a este gozo opaco presente na intoxicação.

Também segundo Tarrab (1998), a operação do analista, como em qualquer outra clínica, é produzir significação e uma falta de saber como causa do padecimento. Não se interpreta a intoxicação, o manejo consiste em que se dê um sentido sexual à sua experiência. Trata-se de formular uma pergunta anterior à entrada da droga em sua vida e de fazer emergir o mais além da experiência de intoxicação, através dos sonhos, das formações do inconsciente, da transferência e o que produz sintoma. Uma direção da droga à falta de saber. A experiência do tóxico rechaça o inconsciente e a operação analítica espera produzi-lo.

Retomando a pergunta inicial, se há alguma especificidade na mulher com relação à toxicomania, concluo que ela está contida na própria posição da mulher perante a sexualidade e seu modo de gozo.

Uma análise pode produzir a “desidealização” da demanda de amor sem limites e sua face mortífera que traz a pulsão de morte.

Como a toxicomania é uma operação sobre a estrutura, a direção do tratamento não pode ser padronizada, tampouco concentrar-se no discurso da droga. Deve ser mantida a clínica do um a um, que vai além do gozo da droga, possibilitando o aparecimento do sintoma inerente ao discurso do inconsciente.

Referências bibliográficas:
DRUMMOND, Cristina. Devastação, outra face da angústia. São Paulo: Opção Lacaniana; 2006; n.45; p. 44-47.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20; Mais, ainda; Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
MILLER, Jacques Alain. Uma partilha sexual. Belo Horizonte. Clique: O sexo e seus furos; 2003; n.2; p.13-29.
NUNES, Eliane Lima Guerra. O ardor e a dor do amor nas canções de Winehouse. Opção Lacaniana on line; 2010; n. 2.
PACHECO, Ana Laura Prates. O feminino e as drogas na atualidade. Mental; 2007; n.9; p.47-61.
SANTIAGO, Jésus. A droga do toxicômano: uma parceria cínica na era da ciência. Rio de Janeiro: Zahar; 2001.
SOLER, Colette. Variáveis do fim da análise. Campinas: Papirus; 1995.
TARRAB, Maurício. O brilho da infelicidade. Rio de Janeiro: Kalimeros. Uma experiência Vazia; 1998; p.149-156.
TARRAB, Maurício. Algo peor que un sintoma. Jornadas del TyA; Los usos de la droga: resoluciones y rupturas. Córdoba; 2001.
TARRAB, Maurício. Produzir novos sintomas. Revista Eletrônica

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