Durval Nogueira Mazzei Filho
Se citássemos todos os autores que
comentam que a humanidade faz uso de drogas desde sempre a lista telefônica da
cidade de São Paulo seria pequena. A referência há algo que não existe mais –
listas telefônicas – é proposital. Implica em introduzir aquilo que a história
pode nos ensinar: se homem, cultura, linguagem e crença formam um amálgama
indissociável não é plenamente possível apostar que o conjunto de saberes, a
episteme, de determinado tempo constitua-se em totalidade. A história ensina o
que escapa e o futuro de contínuo surpreende.
Pois então, se há uso de drogas em
todas as épocas e em todas as culturas nada faz crer que a significação deste
uso seja o mesmo em todas as épocas e em todas as culturas. Decerto, algumas
listas telefônicas e outras máquinas de escrever foram abandonadas no percurso
histórico que se estende a este tempo que vivemos.
E este tempo que vivemos dura por
volta de vinte decênios, se marcarmos o tempo em torno do problema da droga. Este
tempo introduziu a figura do toxicômano, do adicto a drogas, do dependente
químico. Essa figura carimbada é personagem de romances, de filmes, de poemas e
mais recentemente das páginas econômicas e das páginas policiais dos jornais
diários e de revistas leigas. Ocupa papéis de diversas qualidades: o do
milionário que decora a residência com torneiras de ouro ao avião, jovem ainda,
que leva drogas da favela ao carrão do comprador. Mas, sobretudo, o papel do
ser que subjuga todas as atribuições que lhe cabem à presença do peculiar
estado de ‘brisa’, ‘tô loco’, ‘bateu’ de forma ou a leva-las adiante se e
somente se embriagado está ou simplesmente deixa-las de lado pela experiência
da droga. Seja esta qual for: dos lícitos álcool e medicamentos às drogas proibidas.
Entre estes há aqueles que conferem às drogas valor bastante similar a esta
presença ostensiva, mas permanecem ‘funcionais’. Termo curioso que quer dizer
que trabalham, são carinhosos com filhos e parceiras(os), praticam esportes,
fazem sexo, frequentam academias, visitam os pais, fazem yoga, mas sem algo no
fim do dia ou nos finais de semana não estão felizes. Eventualmente, até uma
pisadinha ou outra na jaca dão. Bebem e cheiram em excesso em festas, perdem
dia de trabalho, sofrem acidente de trânsito. Apesar de tudo, não representam
tão bem a triste figura que exaspera os comensais. O primeiro modo do ser é que
é exasperante, pois parece não existir mais nada na vida além da embriaguez e
até jogo do Corinthians vale menos que a ‘brisa’. Como todo o resto: trabalho,
família, sexo, corpo.
O que houve no século XIX que esta
figura passou a frequentar os salões, consultórios e clínicas deve-se a
multidão de fatores e, curiosamente, esta multidão de fatores caminha a passos
coordenados com as representações iluministas mais caras. Liberdade de escolha,
virtude da razão, progresso da medicina, individualismo, diminuição da
influência do discurso Mestre notadamente na forma religiosa, ascensão do
discurso Universitário notadamente na forma científica, valor do trabalho como
meio de produção e de mais valia, sonho da razão de submeter a natureza ao
domínio da técnica de tal jeito que Pico Della Mirandola e Francis Bacon nem
ousaram sonhar, aumento da eficiência do sistema de trocas econômicas, aumento
da expectativa de vida, louvor a fazer-se por si mesmo. Enfim, fatores
macrossociais e culturais que são moldura indelével a este personagem, mas
reconhece-la não diz nada sobre a cena singular emoldurada.
Mas,
quem sabe deita luz mesmo esmaecida sobre o fenômeno dado que o uso de drogas
fora de esquadro, o uso laico ou profano de drogas, é relatado desde a
antiguidade. Cabe afirmar que o uso laico ou profano é o que restou desde o
estabelecimento da modernidade. O uso sacro atual restringe-se a simulacro das
dolorosas sagas chamânicas ou a facilitações da revelação divina própria às
religiões monoteístas. Escohotado (2002) cita texto egípcio datado por volta do
século XX A.C. no qual um sacerdote adverte o pupilo “eu, teu superior,
proíbo-te a acudir às tabernas. Estás degradado como as bestas (p. 82)”. No
mesmo tom, Lewin (2009) cita as críticas que um pai no antigo Egito faz ao
filho “Abandonastes os livros, andas perdido pelos caminhos. O cheiro de
cerveja afasta todos que se aproximam. É a ruína de tua alma que tal como um
timão quebrado não obedece a direção alguma. Como um templo sem deus, como uma
casa sem pão (p. 176)”. São duas referências que aproximam bastante o fenômeno
ao tempo atual. Não deixa de produzir surpresa que a droga em cena nas citações
seja o álcool.
Escohotado,
no entanto, comenta que o mesmo não se dá com drogas que estão entre os
flagelos contemporâneos: o ópio, como modelo (não é inútil lembrar a morfina como
produto do ópio e a transformação química desta: a heroína). Escreve “durante
um período de cinco séculos, que vão desde a primeira menção [do ópio] como
tratamento para ‘males do cérebro’ em Heródoto até as investigações de
Mitrídates o Grande, não existe uma só menção a pessoas escravizadas ou
embrutecidas pelo uso. Tão pouco há menção a transtornos sociais relacionados
ao ópio. Absolutamente ninguém pensa que alguém se degrada ou ameaça a ordem
civil administrando-se ópio ou administrando-o a outros. Como os árabes
declararão mais tarde, o hábito de tomar a substância não só não é prejudicial
em si como é favorável à saúde (p. 144)”. E o autor espanhol sustenta que,
entre os gregos antigos, a noção de drogas social e individualmente perigosas
existia. Cita outra vez as bebidas alcóolicas entre elas. Ruck (1995), a
propósito da discussão sobre o uso de drogas psicoativas nas cerimônias em
Eleusis, templo próximo a Atenas, comenta sobre “um estrondoso escândalo,
quando se descobriu que um bom número de aristocratas atenienses havia começado
a celebrar a cerimônia em casa, com convidados embriagados, durante a ceia (p.
57)”. O professor de Estudos Clássicos em Boston indica como inesperado que
certas cerimônias ocorram fora do ambiente devoto que justifica. Tal
‘escândalo’ teria se dado no século V A.C.. Não deve escapar ao pensamento
apressado que, pelo menos aos cidadãos-livres, peculiar liberdade de escolha e
aposta que a razão podia ser mais interessante que as superstições consistem
também em características próprias ao modo grego clássico de ser e existir.
Também é para não pensar apressadamente que a história com as drogas resume-se
à crítica ao modo moderno de construir a verdade. A ser outra vez salientado
que o desencantamento do mundo, para uma referência muito conhecida e evidente
pelo próprio peso, que o modo moderno, então, restringiu as droga a modos de
uso que respondem somente ao indivíduo. O uso volta-se ao tratamento médico, à
produção de vivências fantásticas e à modulação do desempenho em busca de
performances cada vez mais aperfeiçoadas.
&&&&&&&
Algumas
histórias:
O
psiquiatra, também psicanalista, diretor do tratamento psicoterapêutico e
medicamentoso de certo paciente não toxicômano é, na manhã de um domingo,
surpreendido por vários telefonemas de familiares do paciente. Este estava
hospitalizado e em situação delicada: grave hiponatremia causada pela medicação
para a condição psicótica que o perturba. O psiquiatra não sabia dessa
possibilidade. Pesquisou e descobriu que o fármaco em questão causaria a
condição em 0,001% dos usuários. São esses acontecimentos raros na vida. Mas,
ocorrem. No entanto, mesmo com a troca do fármaco, o fenômeno repetiu-se meses
após. Impunha-se investigação mais acurada. Ela foi feita na clínica. E
surpresa: o sujeito era um dependente. Dependente de água! Ingeria litros de
água diários. Arguido sobre o fato, descreveu os efeitos da ingestão de água
como quem descreve a ingestão de uma substância psicoativa: qual fosse a
manifestação angustiada, usual e cotidiana ou a psicótica, um copo de água
tornava-se apropriado paraíso artificial e a angústia dissipada. Não foi menor
o trabalho que qualquer outra ‘droga’ para demovê-lo da dependência. Hoje, a
estratégia de redução de danos – diminuir a quantidade ingerida – tem
colaborado.
Este
é um analisante. Moço inteligente, culto, filho de família estruturada. Leitor
de filósofos e alta literatura. Formado em universidade de destaque. Tentativas
de vida profissional fracassadas, laços amorosos fracassados, longa internação
(meses) em clínica que faz da miséria humana profissão fracassada, uso de
fármacos recomendados em trabalhos psiquiátricos de ponta fracassados, análise
em andamento e fracassada até o momento. Períodos de não uso de cocaína,
maconha e álcool não superiores a quatro meses. O laço transferencial, se este
termo pode ser fiel, torna o sujeito suposto saber um simulacro (detalhes em
outro trabalho). Em um momento confessional afirma: “dê-me um saco de maconha e
um tanto de cocaína em uma casa com vista para um lago que nada mais na vida eu
quero”. Não se preocupou nem um pouco quando perguntado o que faria com o pão e
a manteiga.
“O
autor ficou atônito com a descoberta da fantástica fertilidade de sua própria
imaginação e dos centros produtores de símbolos, sob o efeito da droga. Sentiu
novamente a experiência do nascimento, viu-se transformado em personagens
mitológicas, flutuou graciosamente através de belas cavernas de gelo reluzente
e magníficas catedrais góticas incrustadas de ouro; viu, com respeito,
comporem-se e recomporem-se amostras de joias, numa variedade infinita de
mandalas de formas vivas, maravilhas de incrível beleza modulando-se em
infinitas variações de si mesmas, dissolvendo-se em galáxias revoltas de
dimensões e significações infinitas ou se transformando em formas livres
maravilhosamente únicas, dançando com uma espontaneidade total em imprevisíveis
construções plenamente extáticas. Uma realidade de ordem superior à realidade
extensiva. Mais exatamente ainda, quem experimentou a droga descobre, com
espanto e alegria, que a diferenciação estabelecida entre um e outro não passa
de um disfarce da identidade (p. 27/8/9)”. Trata-se do relato de Richard Marsh
(1972), doutor em Filosofia na Universidade da Califórnia. Notem as referências
do autor a formas abstratas e a crítica a pilares notáveis da cultura
ocidental: o senso de finitude e o senso de identidade. Comparem com a
referência, logo adiante, sobre o papel da experiência alucinógena em
comunidades primitivas. Aqui há um ‘tune in and drop out’ que exerce direta
crítica ao que é distinção do modo ocidental de existir ao encontro justamente
do fantástico que não deixa de incluir o fundamento transcendental da experiência
mística que está na referência a realidade de ordem superior. Foi modo de
pensar típico do movimento, não por acaso, contracultural dos anos 60 & 70.
“As
palavras mais simples, as ideias mais triviais tomam uma fisionomia nova e
estranha; você se espanta de, até o momento, tê-las achado tão simples.
Semelhanças e aproximações incongruentes, impossíveis de serem percebidas,
jogos de palavras intermináveis, tentativas de comicidade jorram continuamente
de seu cérebro. O demônio o invadiu; é inútil resistir a esta hilaridade,
dolorosa como cócegas. De vez em quando, você ri de si mesmo, de sua
ingenuidade e de sua loucura, e seus companheiros, se você os tem, riem
igualmente de seu estado e do deles; mas como eles não têm malícia, você não
tem rancores. E ainda sobre esse assunto e deste aspecto, não há meio de
verificação: eles talvez acreditem compreendê-lo e a ilusão é recíproca (p.
26). Ora, conhecemos bem a natureza humana para saber que um homem pode, com
uma colherada de confeito, alcançar instantaneamente todos os bens do céu e da
terra, não ganharia jamais a milésima parte destes bens pelo trabalho (p. 63)”.
Este é o poeta e ensaísta Charles Baudelaire (2009) descrevendo a experiência
com o ‘dawanesk’, confeito com haxixe e ópio que o Dr. Moreau de Tours oferecia
aos dândis no hotel Pimodan, em Paris durante o século XIX. A salientar, os
fenômenos de linguagem e o furo absoluto da possibilidade de comunicação
ordinária, além do reconhecimento de uma experiência sem paralelo com a vida
prosaica.
“A Beatífica Visão, Sat Chit Ananda –
Existência-Consciência- Beatitude – pela primeira vez entendi, não em termo de
palavras, não por insinuações rudimentares, vagamente, mas precisa e
completamente, o que queria significar essas sílabas prodigiosas (p. 8). No
estágio final da despersonalização há uma obscura noção de que Tudo está em
todas as coisas – de que Tudo é, em verdade, cada coisa. Isso é, no meu
entender, o máximo a que uma mente finita pode alcançar em aperceber-se de tudo
o que está acontecendo em qualquer parte do universo (p. 13)”. O novelista e
ensaísta Aldous Huxley é o responsável por este texto. Nota-se a religiosidade
difusa que ele próprio comenta: “a experiência com a mescalina é o que os
teólogos católicos chamam de uma graça gratuita (p. 46)”. Huxley, sem a devida
crítica, relata com clareza o curto-circuito entre a dedicação à vida religiosa
e a produção de revelações que a droga promove. Nada de vida monástica, nada de
cilícios ferindo a pele, nada de horas de oração. Exemplo tonitruante de
simulacro produzido pelo efeito tóxico.
“E
deve pensar-se que o vinho supõe uma forma de evadir-se, o que uma camponesa
castelhana chama, até os dias de hoje, o retirapenas
(p. 20)”. Pequeno trecho recolhido pelo historiador Fernand Braudel (1994). A
embriaguez como modo de diminuir dores. Antecede esta citação, no texto
original, que a bebida servia também para diminuir a fome nas épocas de menor
produção alimentar.
“O
pouco de cocaína que acabei de tomar está me tornando tagarela, minha mulherzinha.
Aqui estou eu lhe fazendo confissões tolas, minha doce querida, e na realidade
sem motivo algum, a não ser que seja a cocaína que me faz falar tanto. Foi tão
aborrecido que quase explodi. Só o pouco de cocaína impediu-me de fazê-lo (p.
164/5)”. São frases de Freud à sua amada, Martha Bernays, datada de 2 fevereiro
de 1886. Freud foi outro médico que pesquisou o valor terapêutico da cocaína. A
ponto de por pouco não elevá-la à condição de panaceia. Vale pela percepção de
Freud a respeito de como induz a um estado psíquico, por força de seus efeitos
sobre o ser.
“Heródoto,
que descreveu os costumes funerários dos escitas, relata que à saída dos
funerais efetuavam-se as purificações: colocavam cânhamo (fonte do haxixe e da
maconha) em cima de uma pedra quente, aspiravam a fumaça e logo proferiam
fortes gritos com os quais se comunicavam com o desaparecido para interceder
com ele e por ele aos deuses (p. 57/8)”. Relato que está em Alberto Fontana
(1971), um psiquiatra e psicanalista argentino entusiasta do tratamento
‘psicolítico’ que apostava no uso de alucinógenos como veículo para o
estabelecimento de boas relações transferenciais, favorecedoras de regressão. A
citação vale por revelar a diferença que há entre os usos de drogas nas
diversas culturas. Este uso terapêutico que o autor defende, por mais
estranheza que traga a certos modos psicanalíticos de recortar o real,
insere-se entre os usos culturalmente justificáveis. E ele não é o único.
Humphrey Osmond, nos EUA, e Ronald Sandison, na Grã-Bretanha foram entusiastas
também. Não é muito recordar que no início do ano a Revista ‘Veja’ apresentou,
como matéria destacada na capa, o uso da quetamina como antidepressivo. Para
quem desconhece, a quetamina é o ‘Special K’, famoso em raves com o apelido de
‘eckstasis líquido’. Também não é muito lembrar que esta mesma revista
participou da imensa propaganda mundial em torno da fluoxetina, apresentada com
seu nome comercial original, Prozac, como enfim, a droga legal da felicidade.
“No
mundo pré-industrial ou tribal as plantas psicotrópicas são sagradas e mágicas,
são percebidas como seres viventes com atributos sobrenaturais, que
proporcionam a certos indivíduos eleitos – os chamans – e sob certas
circunstâncias especiais também as pessoas comuns, uma espécie de ponte para
cruzar o golfo que separa este mundo dos Outros Mundos. São, [portanto],
plenamente compatíveis com os sistemas filosóficos e religiosos tradicionais
(p. 41). Um garoto cahuila, depois de sua primeira visão sob sua influência,
converte-se em um firme crente das tradições míticas. A ‘datura’ permitiu-o
vislumbrar a realidade acerca da criação na cosmologia cahuilla. Os seres
sobrenaturais e os aspectos do outro mundo dos que ouvira falar desde a
infância apareceram ante seus olhos como a prova definitiva: foi sua própria
avaliação empírica. Viu-os. São reais. As plantas mágicas, então, atuam para
validar e ratificar a cultura, não para facilitar meios temporais que permitam
escapar dela (p. 42)”. Texto de Peter Furst (1994), antropólogo americano. O escrito
põe em cena o ponto crucial a respeito do uso de drogas contemporâneo: não
acontece no contexto de uma cultura que exige integração, mas no contexto de
uma cultura que não somente permite como confere valor à construção de si,
valor ao nome próprio, valor à identidade e à nomeação. Somos filhos do
imperativo categórico, pois, sem atribuir ao semelhante o mesmo grupo de
valores, vivemos com intensidade a diferença radical que há entre cada cidadão.
Consiste no avesso das comunidades primitivas.
E
este traço é apanágio da cultura ocidental.
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E
é por este traço que a psicanálise pensada como campo do saber e não como
apêndice terapêutico do discurso médico entra. Este traço constitui, na
verdade, um furo, pois o que pode ser considerado essência do homem ocidental é
produto de construção, incorporação e identificação e, em acordo com a ciência
de ponta, o patrimônio essencial da humanidade jaz onde está o inumano:
patrimônio genômico, organização complexa molecular e construções similares.
A
Psicanálise é a disciplina que trouxe ao mundo a chance de pensar o corpo não
somente como o campo do orgânico, do fisiológico e do bioquímico. O corpo como
dito na construção teórica psicanalítica é corpo que sustenta a representação.
É corpo que lança mensagens. É corpo que diz para o Outro e fala desde o Outro.
Este corpo, portanto, é corpo de proteínas, lipídios, carboidratos e letras.
É
desde esta afirmação que é factível retirar consequências do principal dito
freudiano sobre as drogas. Ele fala no ‘Mal-estar da Cultura (1973)’. Neste
texto, Freud é cruel dado que explicita que apesar do princípio do prazer fixar
o objetivo vital, este “programa nem sequer é realizável, pois toda a ordem do
universo se opõe, e ainda estaríamos por afirmar que o plano da Criação não
inclui o propósito de que o homem seja ‘feliz’ (p. 3025)”. Para suportar tal
condição, não passamos sem lenitivos. “São de três espécies: distrações
poderosas que nos fazem parecer pequena nossa miséria; satisfações
substitutivas que a reduz; narcóticos que nos tornam insensíveis a ela (p.
3024)”. A respeito das últimas escreve: “o mais cru, mas também o mais efetivo
dos métodos destinados a produzir tal modificação, é o químico: a intoxicação.
É evidente que existem certas substâncias estranhas ao organismo cuja presença
no sangue e tecidos nos proporciona diretamente sensações prazerosas,
modificando ademais as condições de nossa sensibilidade, de maneira tal que nos
impede de perceber estímulos desagradáveis. Atribui-se tal caráter benéfico à
ação dos estupefacientes na luta pela felicidade e na prevenção da miséria, que
tanto indivíduos como os povos reservaram um lugar permanente na economia
libidinal (p. 3026)”.
A
sacar neste escrito freudiano que as drogas estão na borda da cultura,
frequentemente à disposição nas matas e desertos próximos, bastando colhê-las
e, desde a farmacologia, sintetizá-las. E servem como ponte entre a dor e a
satisfação possível. Satisfação que Freud insistiu incluí-la no sintoma e
representa-la como a recuperação possível de gozo que ‘a exigência da vida’
civilizada impõe. É nesta encruzilhada que “o mais efetivo dos métodos”
literalmente atropela os escaninhos onde encontramos a satisfação inscrita e
permitida pela objeção ao gozo integral. A satisfação via intoxicação química é
verdadeiro curto-circuito entre o corpo bruto e sua pretensa harmonia.
É
nesta senda que entre as raras referências de Lacan à intoxicação por drogas
que ele pergunta “o que uma teoria qualquer pode autenticar (p. 809)” no
registro dos conhecimentos que comportam a conaturalidade entre saber e sujeito
e os especifica “quer se trate de entusiasmo em Platão, dos graus do samadhi no budismo, ou do Erlebnis, experiência vivida do
alucinógeno (p. 809)”. Lacan, então, figura estas formas conaturais de produção
de saber como não psicanalíticas, por serem formas de saber que prescindem do
Outro. Não comenta a propósito da qualidade do saber que advém destes modos.
Pergunta-se, simplesmente, o que se autentifica deles.
Autentifica-se
que são meios que constroem saber por fora da objeção ao gozo que a operação
linguageira sujeita. Desta forma, não suficientemente desenvolvida aqui, o
complexo de fenômenos em torno da droga, de seu uso, seu abuso, seu descaminho,
implica em não considera-los sintomas como descritos por Freud, isto é, página
censurada que retorna. Mas fenômenos que desesperadamente buscam recuperar o
que a Criação não nos legou: satisfação perene.
Pena
que não dá lá muito certo.
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