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19/01/2014

A conexão Psicanálise – Psiquiatria: Efeitos possíveis

Durval Mazzei Nogueira Filho

            O gosto é começar este texto como o Snoopy começa seus romances invariavelmente recusados: “é uma noite negra e turbulenta...”. Pois: aqui está um assunto difícil. Recorrer a uma analogia mais culta permite pensar que a “conexão” entre Psicanálise e Psiquiatria parece o mundo maravilhoso e paradoxal que vige no que os físicos denominam “o infinitamente pequeno”. Aí, no “infinitamente pequeno”, cada um dos elementos reconhecidos parece outra coisa. Por vezes, onda; outras vezes corpúsculo. Outras vezes ainda, o observador julga-se capaz de influenciar o fenômeno observado. Reunindo as duas alegorias, constrói-se uma idéia de quais efeitos são possíveis entre as duas disciplinas. Imaginem as possibilidades.


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            Esta última frase – que as definem como disciplinas distintas, campos epistemológicos distintos, portanto – já é objeto de discussão.
            Qualquer leitor de Freud percebe claramente, nos primeiros escritos, a intenção em legar à Medicina um novo tratamento. Não se tratava de circunscrever um novo campo do saber. A Freud abriu-se a crença que os estados neuróticos mereciam mais que sessões de eletroterapia e banhos em alguma estação de águas. A Freud abriu-se a perspectiva de que a fala diz algo mais que a comunicação ou a descrição mais ou menos clara dos sentimentos, dos projetos de vida e dos objetos do mundo. E Freud apostou que, por esta vertente linguageira, ofereceria à Medicina uma maneira mais eficaz e duradoura que choquinhos no membro dormente ou banhos termais.
            Isto fica inteiramente claro no primeiro escrito considerado do campo psicanalítico, onde Freud compara as paralisias histéricas com as orgânicas. Quem quiser perder (ou ganhar) algum tempo, já que não é momento para descrever a acurácia clínica de Freud, terá o prazer de acompanhar como, a partir de detalhado exame neurológico, é construída a diferença entre as perturbações motoras de etiologia propriamente relacionada a lesões centrais ou periféricas do tecido nervoso e as alterações motoras não determinadas pelo leito neuronal. Ele escreveu: “Eu afirmo, ao contrário, que a lesão das paralisias histéricas deve ser por completo independente da anatomia do sistema nervoso, já que a histeria se comporta em suas paralisias e outras manifestações, como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse nenhuma notícia dela (...), toma os órgãos no sentido vulgar, popular, do nome que levam: a perna é a perna até a inserção da cadeira; o braço é a extremidade superior, tal como é desenhado pelas roupas. Não há razão para reunir paralisia do braço e paralisia do rosto”. Este trecho esclarece que o paralisado na histeria é de outra ordem: a ordem da cultura. O braço imobilizado da mocinha no século XIX é o braço como assim é chamado e descrito pela linguagem comum e não o braço anatômico que a representação do cérebro como um homúnculo localizaria em algum giro qualquer a área correspondente a um dedo que se mexe.
            Esta proposição não foi suficiente para o vienense supor que inventava algo novo. Pelo contrário, mesmo após de escrever obras importantes como ‘A interpretação dos sonhos’ e ‘A psicopatologia da vida cotidiana’, Freud ainda preocupava-se que a psicanálise fosse considerada um ramo do misticismo moderno pela Medicina. O que incomodava sobremaneira o espírito positivo e científico de Freud.
            E, na própria ‘Interpretação dos sonhos’, notara que se obedecesse aos princípios lógicos que desenvolvia, não seguiria nem o discurso científico da época e muito menos seguiria o entendimento sobrenatural do sonho. Segundo esta leitura tradicional, o sonho é uma das intromissões do divino no pequeno ser. Uma maneira dos deuses falarem, aconselharem, alertarem, indicarem os atalhos da vida. A neurociência da época afirmaria que a fadiga produz toxinas que o estado de sono teria a precípua função de metabolizar. Alguma região já isenta de toxinas produziria uma imagem que, ao reunir-se com imagens oriundas de outras regiões livres de toxinas, conferiria ao sonho o caráter de uma produção sem lógica. Outra vez, portanto, o espírito freudiano tocava na construção de uma nova forma de abordar o real. O sonho é, sim, uma mensagem, mas não mensagem divina. É de outra cena. A cena do desejo recalcado e manifesta-se segundas regras lógicas muito precisas que guiam a sua decifração. Nem a ciência usual e menos o místico. Neste momento, ainda não se convenceu. É bem da psicanálise escrever que Freud não sabia o que falava.  
            E também não se convenceu ao notar que imprimia ao sintoma outro selo. Um selo que não restringia o sintoma à face de déficit, de índice de mau funcionamento. Freud atribuiu ao sintoma dois termos ausentes na leitura de médicos e místicos. Nem os deuses estão insatisfeitos comigo e nem algo não funciona bem no meu corpo. Minha serotonina anda baixa ou meus receptores não são da melhor qualidade. Freud atribuiu ao sintoma um sentido de realização e uma marca de gozo, de tendência à repetição. Tais termos não devem de nenhuma forma confundir-se com a noção de que se sintoma é realização e gozo, ele não é sofrimento. O estatuto do sofrer é que é distinto no discurso analítico. Na peculiar leitura sobre o sintoma, Freud concedeu a este um caráter distinto em relação às outras formações do inconsciente (ato falho, sonho e chiste). A distinção é a permanência do sintoma em contraste com o surpreendente fulgor das outras formações. Assim, se há a vertente aberta à decifração; há também vertente de repetição, de real no sentido de Lacan, que foge à decifração.
            Enfim: depois disso tudo não é possível mais apostar em simplesmente legar um novo tratamento à Medicina. A Psicanálise é mais que uma terapêutica, não obstante a eficácia desta terapêutica não deixa nunca de reservar-se um pilar de sustentação. A Psicanálise é outro recorte no real. É um campo epistêmico. Com proposições específicas, método particular, formas lógicas de demonstração e independência conceitual.
            Se esta qualificação sustenta-se os efeitos da conexão Psiquiatria/Psicanálise não podem ser senão bons. Abrem-se campos de discussão, os atores sentam-se e conversam e surpreendem-se um com o outro. Podem desafiar-se, brigar, chamar um de humanista lacrimejante o outro de transformar o ser em objeto vulgar. Tecer loas sobre o quanto um é melhor que o outro. Exibir protocolos um o avesso do outro. Defender posições políticas distintas. Competir por cátedras na medida em que os campos estão estabelecidos como discursos distintos. Ora: se o debate fica na explicitação de diferenças e não há que esperar que o fim deste debate seja a unificação de posições e o trunfo final não é mais que suportar a alteridade. Afinal de contas, se a matéria de psiquiatras e psicanalistas é a mesma não é necessário e nem suficiente que terminem por concordar em seja lá qual for o tema.
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            Mas: de uns tempos para cá a diversidade mantem-se no cinismo boboca do discurso politicamente correto. Na ciência dura e na econometria ninguém quer saber disso: alteridade. Há que salientar que a Psiquiatria e a Psicanálise entendidas como escrito acima, a rigor, não têm nada a ver com isso. São veleiros singrando ao sabor de ventos poderosos.
            Na ciência dura, salientam-se dois pontos. Um conceitual, o outro ideológico. O conceitual a frisar nasceu na conferência de um físico: Erwin Schrödinger. Este físico, entre os fundadores da mecânica quântica, em 1943 professou uma conferência no Trinity College de Dublin. A conferência tinha um nome enérgico: “O que é vida?”. O texto centrava-se em dois pontos fundamentais: a natureza da hereditariedade e a termodinâmica dos seres vivos. Apoiou-se na suposição de que o elemento básico da hereditariedade, o gene, consistia em uma espécie de cristal aperiódico que armazenava informação por meio de um código presente em sua estrutura. A propósito da termodinâmica dos seres vivos, desenvolveu a hipótese da criação da ordem a partir da desordem – a neguentropia. Propôs que a organização do ser vivo era mantida produzindo desordem no meio circundante. Se esta última proposição permanece aberta a discussões sem fim; a primeira foi um sucesso. Dez anos após, Watson e Crick desvendaram a estrutura do ADN e firmaram a noção de código genético. Entretanto, não é o acerto da antecipação da noção de código genético e também não é a polêmica em torno da neguentropia que torna Schrödinger um marco. É seu discurso colocar o último prego no túmulo da diferença, sustentada pelo vitalismo, entre os seres vivos e o resto do mundo natural. Deixou claro que os seres vivos equivaliam-se a sistemas físicos. Estava aberta a porta para o sonho de uma ciência unificada. A Biologia, a Física e a Química de mãos dadas, defendendo o projeto reducionista.   
            A discussão, se sustentada neste viés, entre entusiastas do projeto reducionista e os críticos deste (e há aos borbotões, mesmo entre cientistas duros) estamos bem encaminhados, mesmo que a perspectiva unificadora possa parecer um conto de terror para alguns. É exatamente esta perspectiva reducionista que pode, pelo menos na letra de um ou outro autor, cobrir-se de tintas ideológicas. Especialmente, os autores que crêem que a explicação biológica deve sobrepor-se a qualquer outra.
            O outro termo, a econometria, não oferece a mesma perspectiva e, certamente, colabora para que a discussão empobreça-se. O bolso é o órgão do corpo humano mais sensível que qualquer coração, cérebro, fígado ou aquele que vier.
            E a econometria imiscui-se no flanco mais aberto da conexão entre as duas disciplinas: frequentemente discutimos sobre o mesmo material. E a econometria propôs o seguinte: se vocês falam sobre o mesmo material e se a ciência é única não é possível a permanência de tanta diversidade. Demonstrem para que servem, demonstrem em quanto tempo vocês resolvem os quadros clínicos. Somente receberá o pagamento quem sair-se vitorioso nesta disputa. Um elemento extra-debates científicos, portanto, entrou na cena, desmontando-a. A psicoterapia foi a atividade que brilhou na berlinda. Não se podia mais, nesta sociedade de massas deixando de ser disciplinar e tornando-se uma sociedade de controle, gastar tanto tempo e dinheiro com tratamentos.
            Esta história começou na mesma época em que gestava a terceira edição do DSM: final dos anos 70. Em outubro de 1979, Jay Constatine, o principal auxiliar do senador republicano Huey Long, animou uma discussão no sub-Comitê de Saúde a propósito dos gastos do Medicare com psicoterapia. A intenção que, a princípio, não deve ser criticada, visava que os psicoterapeutas mostrassem provas da eficácia do tratamento. Estas provas implicariam no reembolso destes tratamentos pelo governo americano. Gerald Klerman, psiquiatra que então chefiava a ‘Administração para álcool, abuso de drogas e saúde mental’ (ADAMHA), órgão federal de assuntos psiquiátricos, foi um animado interlocutor dos políticos. Este psiquiatra, um defensor da pesquisa baseada na lógica da Biologia assumida como ciência ‘dura’, determinou que tais princípios é que deveriam orientar as pesquisas para levar a cabo tal avaliação. O detalhe que este homem foi o mesmo que apoiou um reclamante no caso jurídico Osterhoff versus Chestnut Lodge, que pretendia definir a Psicanálise como crime, certamente, não é mera coincidência e nem loucura conspiratória.
            Tal princípio triunfou. As psicoterapias deveriam demonstrar a eficácia e o método para averiguá-las não seria outro que a mesma metodologia aplicada nos ensaios clínicos: o verificacionismo empírico, sustentado no positivismo lógico.
            Sem entrar na discussão sobre a viabilidade e a adequação deste método para a avaliação das psicoterapias (todo mundo sabe sem pesquisar coisa alguma que os estilos psicoterapêuticos estruturados, cientificistas, normativos e prescritivos dão-se melhor no que estas pesquisas mensuram), é evidente que a condição exigida acima para que os efeitos da conexão Psiquiatria/Psicanálise não sejam senão bons deixa de ser cumprida. A Psicanálise como campo do saber não mais é reconhecida. Deve limitar-se a uma psicoterapia como qualquer outra, a exibir bons resultados no tempo mais curto possível. Diante desta exigência não há mortal com três neurônios que deixe de ver a Psicanálise como uma porcaria (psicanalistas da IPA, também fascinados por pesquisar eficiência, encontram bons resultados quando o tempo da pesquisa é estendido).     
Há, então, um termo novo em marcha na psiquiatria. Se este ramo da medicina por força da natureza de seu objeto – a doença mental – esteve até 30 anos atrás aberto a múltiplas leituras, incluindo contribuições da fenomenologia, do existencialismo, da sociologia, da antropologia ao lado da psicanalítica. Este termo novo em marcha vem com a proposta de acabar com esta multiplicidade e privilegiar o discurso biológico, em nome de uma noção bastante restritiva de ciência. Assim, desde a demência senil ao mais corriqueiro luto são objetos deste discurso. Estão, então, na primeira linha do pensamento psiquiátrico contemporâneo as explicações que recorrem de cabo a rabo à linguagem biológica. O sofrimento, patológico ou não, é expresso em termos de desequilíbrios na neurotransmissão que, obviamente, são determinados por alterações genéticas transmissíveis ou por pequenas lesões anatômicas indistinguíveis se não fosse a colaboração dos modernos recursos de diagnóstico por imagem.
Assim, se o sofrimento de um ser é abordado pelo viés do desequilíbrio da neurotransmissão, determinado pelos azares genômicos, é claro que as inter-relações pessoais, a história, a subjetividade, a transcendência não são nada mais que epifenômenos de uma atividade cerebral autônoma que, se anômala, explica as anormalidades do sujeito em viver sua felicidade natural e evidente e deve ser corrigida com remédios e disciplina. Este discurso tem sido o predominante na instituição psiquiátrica, não que vozes aqui e ali não apontem a monotonia e a chatice que tomou conta da Psiquiatria contemporânea.
Neste contexto, a conexão Psiquiatria/Psicanálise produz efeitos lamentáveis. O principal deles, talvez, seja decorrente da lógica da substituição. Ali pelos anos 80 não foi nem um pouco raro encontrar ‘papers’ que diziam algo como “até então se fiava que a angústia relacionava-se a conflitos e a dilemas edípicos, hoje sob a luz da ciência e de poderosos fármacos sabemos que a angústia é produto de um particular desequilíbrio da neurotransmissão”. Pronto: o psicólogo comportamental Eysenck estava renascido. Não sei como pessoas inteligentes perdem tanto tempo com isso, disse o nobre pesquisador. É claro que uma conexão deste tipo não permite a passagem de informação. Assim como é claro que nas fileiras psicanalíticas também há aquele que submete a Psiquiatria a uma mera prática a favor do mercado neoliberal, pilar entre os homens do bom desempenho no mercado de ações dos papéis das grandes corporações farmacêuticas.
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A única conclusão possível deste rápido discurso é: a conexão entre a Psiquiatria e a Psicanálise pode ser viável e trazer saber a ambas se o psicanalista singular e psiquiatra singular estiverem dispostos a levantar o nariz um milímetro acima da onipotência do próprio conhecimento e reconhecerem que estas disciplinas são campos epistemológicos distintos. Se se dispuserem a informar-se mais a respeito da disciplina que faz fronteira e, ao contrário de Klerman, admitirem que a multiplicidade de método é mais interessante e divertida que o olho da Grande Irmão.

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