Durval Mazzei Nogueira Filho
O gosto é começar este texto como o
Snoopy começa seus romances invariavelmente recusados: “é uma noite negra e
turbulenta...”. Pois: aqui está um assunto difícil. Recorrer a uma analogia
mais culta permite pensar que a “conexão” entre Psicanálise e Psiquiatria
parece o mundo maravilhoso e paradoxal que vige no que os físicos denominam “o
infinitamente pequeno”. Aí, no “infinitamente pequeno”, cada um dos elementos
reconhecidos parece outra coisa. Por vezes, onda; outras vezes corpúsculo.
Outras vezes ainda, o observador julga-se capaz de influenciar o fenômeno
observado. Reunindo as duas alegorias, constrói-se uma idéia de quais efeitos
são possíveis entre as duas disciplinas. Imaginem as possibilidades.
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Esta última frase – que as definem
como disciplinas distintas, campos epistemológicos distintos, portanto – já é
objeto de discussão.
Qualquer leitor de Freud percebe
claramente, nos primeiros escritos, a intenção em legar à Medicina um novo
tratamento. Não se tratava de circunscrever um novo campo do saber. A Freud
abriu-se a crença que os estados neuróticos mereciam mais que sessões de
eletroterapia e banhos em alguma estação de águas. A Freud abriu-se a
perspectiva de que a fala diz algo mais que a comunicação ou a descrição mais
ou menos clara dos sentimentos, dos projetos de vida e dos objetos do mundo. E
Freud apostou que, por esta vertente linguageira, ofereceria à Medicina uma
maneira mais eficaz e duradoura que choquinhos no membro dormente ou banhos
termais.
Isto
fica inteiramente claro no primeiro escrito considerado do campo psicanalítico,
onde Freud compara as paralisias histéricas com as orgânicas. Quem quiser
perder (ou ganhar) algum tempo, já que não é momento para descrever a acurácia
clínica de Freud, terá o prazer de acompanhar como, a partir de detalhado exame
neurológico, é construída a diferença entre as perturbações motoras de
etiologia propriamente relacionada a lesões centrais ou periféricas do tecido
nervoso e as alterações motoras não determinadas pelo leito neuronal. Ele
escreveu: “Eu afirmo, ao contrário,
que a lesão das paralisias histéricas deve ser por completo independente da
anatomia do sistema nervoso, já que a histeria se comporta em suas paralisias
e outras manifestações, como se a anatomia não existisse, ou como se não
tivesse nenhuma notícia dela (...),
toma os órgãos no sentido vulgar, popular, do nome que levam: a perna é a perna
até a inserção da cadeira; o braço é a extremidade superior, tal como é desenhado
pelas roupas. Não há razão para reunir paralisia do braço e paralisia do
rosto”. Este trecho esclarece que o paralisado na histeria é de outra ordem: a
ordem da cultura. O braço imobilizado da mocinha no século XIX é o braço como
assim é chamado e descrito pela linguagem comum e não o braço anatômico que a
representação do cérebro como um homúnculo localizaria em algum giro qualquer a
área correspondente a um dedo que se mexe.
Esta proposição não foi suficiente
para o vienense supor que inventava algo novo. Pelo contrário, mesmo após de
escrever obras importantes como ‘A interpretação dos sonhos’ e ‘A
psicopatologia da vida cotidiana’, Freud ainda preocupava-se que a psicanálise
fosse considerada um ramo do misticismo moderno pela Medicina. O que incomodava
sobremaneira o espírito positivo e científico de Freud.
E, na própria ‘Interpretação dos
sonhos’, notara que se obedecesse aos princípios lógicos que desenvolvia, não
seguiria nem o discurso científico da época e muito menos seguiria o entendimento
sobrenatural do sonho. Segundo esta leitura tradicional, o sonho é uma das
intromissões do divino no pequeno ser. Uma maneira dos deuses falarem,
aconselharem, alertarem, indicarem os atalhos da vida. A neurociência da época
afirmaria que a fadiga produz toxinas que o estado de sono teria a precípua
função de metabolizar. Alguma região já isenta de toxinas produziria uma imagem
que, ao reunir-se com imagens oriundas de outras regiões livres de toxinas,
conferiria ao sonho o caráter de uma produção sem lógica. Outra vez, portanto,
o espírito freudiano tocava na construção de uma nova forma de abordar o real. O
sonho é, sim, uma mensagem, mas não mensagem divina. É de outra cena. A cena do
desejo recalcado e manifesta-se segundas regras lógicas muito precisas que
guiam a sua decifração. Nem a ciência usual e menos o místico. Neste momento,
ainda não se convenceu. É bem da psicanálise escrever que Freud não sabia o que
falava.
E também não se convenceu ao notar
que imprimia ao sintoma outro selo. Um selo que não restringia o sintoma à face
de déficit, de índice de mau funcionamento. Freud atribuiu ao sintoma dois
termos ausentes na leitura de médicos e místicos. Nem os deuses estão
insatisfeitos comigo e nem algo não funciona bem no meu corpo. Minha serotonina
anda baixa ou meus receptores não são da melhor qualidade. Freud atribuiu ao
sintoma um sentido de realização e uma marca de gozo, de tendência à repetição.
Tais termos não devem de nenhuma forma confundir-se com a noção de que se
sintoma é realização e gozo, ele não é sofrimento. O estatuto do sofrer é que é
distinto no discurso analítico. Na peculiar leitura sobre o sintoma, Freud
concedeu a este um caráter distinto em relação às outras formações do
inconsciente (ato falho, sonho e chiste). A distinção é a permanência do
sintoma em contraste com o surpreendente fulgor das outras formações. Assim, se
há a vertente aberta à decifração; há também vertente de repetição, de real no
sentido de Lacan, que foge à decifração.
Enfim: depois disso tudo não é possível
mais apostar em simplesmente legar um novo tratamento à Medicina. A Psicanálise
é mais que uma terapêutica, não obstante a eficácia desta terapêutica não deixa
nunca de reservar-se um pilar de sustentação. A Psicanálise é outro recorte no
real. É um campo epistêmico. Com proposições específicas, método particular,
formas lógicas de demonstração e independência conceitual.
Se esta qualificação sustenta-se os
efeitos da conexão Psiquiatria/Psicanálise não podem ser senão bons. Abrem-se
campos de discussão, os atores sentam-se e conversam e surpreendem-se um com o
outro. Podem desafiar-se, brigar, chamar um de humanista lacrimejante o outro
de transformar o ser em objeto vulgar. Tecer loas sobre o quanto um é melhor
que o outro. Exibir protocolos um o avesso do outro. Defender posições
políticas distintas. Competir por cátedras na medida em que os campos estão
estabelecidos como discursos distintos. Ora: se o debate fica na explicitação
de diferenças e não há que esperar que o fim deste debate seja a unificação de
posições e o trunfo final não é mais que suportar a alteridade. Afinal de
contas, se a matéria de psiquiatras e psicanalistas é a mesma não é necessário
e nem suficiente que terminem por concordar em seja lá qual for o tema.
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Mas: de uns tempos para cá a diversidade
mantem-se no cinismo boboca do discurso politicamente correto. Na ciência dura
e na econometria ninguém quer saber disso: alteridade. Há que salientar que a
Psiquiatria e a Psicanálise entendidas como escrito acima, a rigor, não têm
nada a ver com isso. São veleiros singrando ao sabor de ventos poderosos.
Na ciência dura, salientam-se dois
pontos. Um conceitual, o outro ideológico. O conceitual a frisar nasceu na
conferência de um físico: Erwin Schrödinger. Este físico, entre os fundadores
da mecânica quântica, em 1943 professou uma conferência no Trinity College de
Dublin. A conferência tinha um nome enérgico: “O que é vida?”. O texto
centrava-se em dois pontos fundamentais: a natureza da hereditariedade e a
termodinâmica dos seres vivos. Apoiou-se na suposição de que o elemento básico
da hereditariedade, o gene, consistia em uma espécie de cristal aperiódico que
armazenava informação por meio de um código presente em sua estrutura. A
propósito da termodinâmica dos seres vivos, desenvolveu a hipótese da criação
da ordem a partir da desordem – a neguentropia. Propôs que a organização do ser
vivo era mantida produzindo desordem no meio circundante. Se esta última
proposição permanece aberta a discussões sem fim; a primeira foi um sucesso.
Dez anos após, Watson e Crick desvendaram a estrutura do ADN e firmaram a noção
de código genético. Entretanto, não é o acerto da antecipação da noção de
código genético e também não é a polêmica em torno da neguentropia que torna
Schrödinger um marco. É seu discurso colocar o último prego no túmulo da
diferença, sustentada pelo vitalismo, entre os seres vivos e o resto do mundo
natural. Deixou claro que os seres vivos equivaliam-se a sistemas físicos.
Estava aberta a porta para o sonho de uma ciência unificada. A Biologia, a
Física e a Química de mãos dadas, defendendo o projeto reducionista.
A discussão, se sustentada neste
viés, entre entusiastas do projeto reducionista e os críticos deste (e há aos
borbotões, mesmo entre cientistas duros) estamos bem encaminhados, mesmo que a
perspectiva unificadora possa parecer um conto de terror para alguns. É
exatamente esta perspectiva reducionista que pode, pelo menos na letra de um ou
outro autor, cobrir-se de tintas ideológicas. Especialmente, os autores que
crêem que a explicação biológica deve sobrepor-se a qualquer outra.
O outro termo, a econometria, não
oferece a mesma perspectiva e, certamente, colabora para que a discussão
empobreça-se. O bolso é o órgão do corpo humano mais sensível que qualquer
coração, cérebro, fígado ou aquele que vier.
E a econometria imiscui-se no flanco
mais aberto da conexão entre as duas disciplinas: frequentemente discutimos
sobre o mesmo material. E a econometria propôs o seguinte: se vocês falam sobre
o mesmo material e se a ciência é única não é possível a permanência de tanta
diversidade. Demonstrem para que servem, demonstrem em quanto tempo vocês
resolvem os quadros clínicos. Somente receberá o pagamento quem sair-se
vitorioso nesta disputa. Um elemento extra-debates científicos, portanto,
entrou na cena, desmontando-a. A psicoterapia foi a atividade que brilhou na
berlinda. Não se podia mais, nesta sociedade de massas deixando de ser
disciplinar e tornando-se uma sociedade de controle, gastar tanto tempo e dinheiro
com tratamentos.
Esta história começou na mesma época
em que gestava a terceira edição do DSM: final dos anos 70. Em outubro de 1979,
Jay Constatine, o principal auxiliar do senador republicano Huey Long, animou
uma discussão no sub-Comitê de Saúde a propósito dos gastos do Medicare com
psicoterapia. A intenção que, a princípio, não deve ser criticada, visava que
os psicoterapeutas mostrassem provas da eficácia do tratamento. Estas provas
implicariam no reembolso destes tratamentos pelo governo americano. Gerald
Klerman, psiquiatra que então chefiava a ‘Administração para álcool, abuso de
drogas e saúde mental’ (ADAMHA), órgão federal de assuntos psiquiátricos, foi
um animado interlocutor dos políticos. Este psiquiatra, um defensor da pesquisa
baseada na lógica da Biologia assumida como ciência ‘dura’, determinou que tais
princípios é que deveriam orientar as pesquisas para levar a cabo tal
avaliação. O detalhe que este homem foi o mesmo que apoiou um reclamante no
caso jurídico Osterhoff versus Chestnut Lodge, que pretendia definir a
Psicanálise como crime, certamente, não é mera coincidência e nem loucura
conspiratória.
Tal princípio triunfou. As
psicoterapias deveriam demonstrar a eficácia e o método para averiguá-las não
seria outro que a mesma metodologia aplicada nos ensaios clínicos: o
verificacionismo empírico, sustentado no positivismo lógico.
Sem entrar na discussão sobre a
viabilidade e a adequação deste método para a avaliação das psicoterapias (todo
mundo sabe sem pesquisar coisa alguma que os estilos psicoterapêuticos
estruturados, cientificistas, normativos e prescritivos dão-se melhor no que
estas pesquisas mensuram), é evidente que a condição exigida acima para que os
efeitos da conexão Psiquiatria/Psicanálise não sejam senão bons deixa de ser
cumprida. A Psicanálise como campo do saber não mais é reconhecida. Deve
limitar-se a uma psicoterapia como qualquer outra, a exibir bons resultados no
tempo mais curto possível. Diante desta exigência não há mortal com três
neurônios que deixe de ver a Psicanálise como uma porcaria (psicanalistas da
IPA, também fascinados por pesquisar eficiência, encontram bons resultados
quando o tempo da pesquisa é estendido).
Há, então, um termo novo
em marcha na psiquiatria. Se este ramo da medicina por força da natureza de seu
objeto – a doença mental – esteve até 30 anos atrás aberto a múltiplas
leituras, incluindo contribuições da fenomenologia, do existencialismo, da
sociologia, da antropologia ao lado da psicanalítica. Este termo novo em marcha
vem com a proposta de acabar com esta multiplicidade e privilegiar o discurso
biológico, em nome de uma noção bastante restritiva de ciência. Assim, desde a
demência senil ao mais corriqueiro luto são objetos deste discurso. Estão,
então, na primeira linha do pensamento psiquiátrico contemporâneo as
explicações que recorrem de cabo a rabo à linguagem biológica. O sofrimento,
patológico ou não, é expresso em termos de desequilíbrios na neurotransmissão
que, obviamente, são determinados por alterações genéticas transmissíveis ou
por pequenas lesões anatômicas indistinguíveis se não fosse a colaboração dos
modernos recursos de diagnóstico por imagem.
Assim, se o sofrimento de
um ser é abordado pelo viés do desequilíbrio da neurotransmissão, determinado
pelos azares genômicos, é claro que as inter-relações pessoais, a história, a
subjetividade, a transcendência não são nada mais que epifenômenos de uma
atividade cerebral autônoma que, se anômala, explica as anormalidades do
sujeito em viver sua felicidade natural e evidente e deve ser corrigida com
remédios e disciplina. Este discurso tem sido o predominante na instituição
psiquiátrica, não que vozes aqui e ali não apontem a monotonia e a chatice que
tomou conta da Psiquiatria contemporânea.
Neste contexto, a conexão
Psiquiatria/Psicanálise produz efeitos lamentáveis. O principal deles, talvez,
seja decorrente da lógica da substituição. Ali pelos anos 80 não foi nem um
pouco raro encontrar ‘papers’ que diziam algo como “até então se fiava que a
angústia relacionava-se a conflitos e a dilemas edípicos, hoje sob a luz da
ciência e de poderosos fármacos sabemos que a angústia é produto de um
particular desequilíbrio da neurotransmissão”. Pronto: o psicólogo
comportamental Eysenck estava renascido. Não sei como pessoas inteligentes
perdem tanto tempo com isso, disse o nobre pesquisador. É claro que uma conexão
deste tipo não permite a passagem de informação. Assim como é claro que nas
fileiras psicanalíticas também há aquele que submete a Psiquiatria a uma mera
prática a favor do mercado neoliberal, pilar entre os homens do bom desempenho
no mercado de ações dos papéis das grandes corporações farmacêuticas.
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A única conclusão possível
deste rápido discurso é: a conexão entre a Psiquiatria e a Psicanálise pode ser
viável e trazer saber a ambas se o psicanalista singular e psiquiatra singular
estiverem dispostos a levantar o nariz um milímetro acima da onipotência do próprio
conhecimento e reconhecerem que estas disciplinas são campos epistemológicos
distintos. Se se dispuserem a informar-se mais a respeito da disciplina que faz
fronteira e, ao contrário de Klerman, admitirem que a multiplicidade de método
é mais interessante e divertida que o olho da Grande Irmão.
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