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25/01/2014

A Toxicomania entre a Psicanálise e a Psiquiatria

Durval Mazzei Nogueira Filho*

Resumo: o autor alerta aos profissionais que trabalham com a drogadicção, pela via psicanalítica, que, em determinadas situações, é necessária a intervenção médica mesmo se elemento em questão possa ser deduzido da relação transferencial.

A toxicomania entre a Psicanálise e a Psiquiatria

Introdução – exposição de motivos

        A condição na qual a existência de um sujeito, suas relações privilegiadas de prazer, é operada pela presença ou ausência de uma droga de efeito psíquico recebe a denominação de toxicomania, drogadicção ou dependência química.
       A simplicidade da definição não esconde a multiplicidade de circunstâncias clínicas que envolvem a apresentação dos toxicômanos. Do usuário eventual, mas não por isso menos fascinado ao efeito da droga, ao dependente de uso cotidiano. Do dependente de uso cotidiano que mantém, apesar da marca de dissociação, laços sociais, ao sujeito cuja existência exibe um evidente prejuízo na qualidade e no prazer decorrentes de funções e atos não associados com a obtenção da droga. O uso da droga pode acabar tingido com o envolvimento a circunstâncias delinquenciais até o rompimento dos laços que não sejam interessantes à continuidade da toxicomania.
Com freqüência, estes sujeitos, ao demandar tratamento, podem se apresentar com um pedido similar ao de um neurótico que esconde um grande prazer e, por algum tempo, é possível a manutenção deste semblante. Também comuns são as demandas nas quais o sujeito apresenta-se diagnosticado: “sou um toxicômano”. Tanto um estilo de demanda quanto o outro deve ser acatado com cautela. É proposição deste escrito que a toxicomania exerce um singular deslocamento da palavra, no que esta se associa ao desejo e à verdade, que é mister a atenção do analista ao fato toxicomaníaco como uma novidade no campo dos prazeres.
        Como se isso não bastasse, a clínica ainda é permeada por situações claras de intoxicação crônica, de episódios agudos produzidos por excesso na dose que, com alguma freqüência, resultam em condições médicas tais como convulsões, confusão mental e estados comatosos que colocam a vida orgânica do sujeito em risco. Também são acontecimentos comuns as diversas manifestações de abstinência que – via de regra -  requerem atenção hospitalar, assim como as condições acima citadas (a intoxicação crônica e o excesso de dose). A síndrome de abstinência pelo álcool, por exemplo, leva à morte 10 a 15% dos sujeitos que a ela chegam (1).
        Apesar destes eventos, nos quais as experiências médica e psiquiátrica são bem vindas, o analista, mesmo sem passar pela medicina, está autorizado a não ceder diante do toxicômano. Mas, o analista não está autorizado a apaixonar-se pelo desconhecimento, senão o alheio. E a Psicanálise tem peculiaridades que, por antecipação, sabe-se que não se aplica a toda e qualquer aventura na qual o toxicômano se embrenha, pelo menos no momento em que esta aventura se dá exuberantemente. A síndrome de abstinência, os quadros agudos de superdosagem são situações desta natureza. É de Lacan: “Afirmamos, quanto a nós, que a técnica não pode ser compreendida nem corretamente aplicada... quando se desconhecem os conceitos que a fundamentam... esses conceitos só adquirem pleno sentido ao se orientarem num campo de linguagem, ao se orientarem na função da fala” (2). As circunstâncias presentemente comentadas não se ordenam às funções da fala, ordenam-se mais à possibilidade das drogas exercerem efeitos aquém dos psíquicos. Efeitos orgânicos, biológicos, bioquímicos, metabólicos, o nome que desejarem. Assim é novamente Lacan quem fala, “... a originalidade do método é feita dos meios que ela se priva, é que os meios que ele se reserva bastam para constituir um campo...” (2). O psicanalista, portanto, nada perde se saca a relatividade de sua operação. Saber aonde vale e aonde não vale a palavra robustece a clínica e a ética. Seria, sim, interessante, se as outras disciplinas – notadamente, as de tom empírico – sacassem que a lisura do método garante a lisura do método e não a superioridade do procedimento experimental. Este pequeno comentário está aqui presente, em função das críticas que a Psicanálise recebe dos empiristas, que a consideram menos confiável e válida por não recorrer, obrigatoriamente, à metodologia experimental ordinária.
        Assim, se anteriormente o texto frisou o “risco à vida” que se apresenta no horizonte da imprudência toxicomaníaca, este sublinhar não foi para emprestar ao analista a condição de salvador de vidas. Foi um singelo alerta com a intenção de colocar as diversas ocorrências ao redor da toxicomania em seu devido lugar. Para quem pode, deve ou quer ouvir. Nada em contrário à consideração que uma passagem ao ato deste jaez possa habitar a relação transferencial e o psicanalista, indubitavelmente, tem como decidir sobre a natureza da ocorrência: se a passagem ao ato de tom transferencial ou um acidente, fora da cadeia significante. Pelo sim ou pelo não, pode decidir a conveniência de incluir o dispositivo hospitalar geral ou – especificamente – o dispositivo psiquiátrico. O que não pode imperar é o desconhecimento de que as drogas têm um efeito aquém do psíquico. E é justamente este “aquém” que desloca o sujeito e o isola da função da fala.
        Este escrito, mesmo com a possibilidade de desandar para um didatismo modorrento, vem dizer algumas palavras a respeito destes momentos encontrados no curso da existência de um sujeito submisso à droga. Caso surjam recomendações, elas não serão mais que recomendações. Sirvam a quem servir. E que sirva à Psicanálise e à manutenção do sujeito inefável. Condição ameaçada pela irresponsável ética pós-moderna e pelo explicacionismo biológico, tão desrresponsabilizante quanto o “must” de nosso tempo.

Nada mais que uma referência

Para esta tarefa, utilizar-se-á como guia a última edição da seção V da décima versão da classificação internacional de doenças publicada em 1992 pela Organização Mundial da Saúde (3). Esta escolha foi feita em função desta classificação consistir na referência mundial – exceção feita aos Estados Unidos – quando a questão é definir um diagnóstico e elaborar quadros estatísticos. Além do mais, a CID-10, como é conhecida, guarda semelhanças claras com o DSM IV elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana, semelhanças de tal monta que as críticas e os elogios a um sistema classificatório são uma luva para o outro.
 Assim, a utilização da CID-10 como uma referência não é nenhuma alusão à ausência de necessidade de verificação dos conceitos aqui expostos e, muito menos, adesão à crença imperante no campo psiquiátrico que tais diretrizes diagnósticas “não contém implicações teóricas” (3). Em poucos lugares é tão clara a intenção de autores em enquadrar a atividade médica no molde empírico e franquear a passagem para as ideologias de tom biológico e comportamental. Desde o desenho lógico que define a exposição das várias condições clínicas até a maneira sugerida para a construção de um diagnóstico confiável: a somatória ordinária de sintomas sem nenhuma preocupação estrutural. Sonenreich e Estevão dizem: “Formular um diagnóstico mais aceito não significa uma boa compreensão dos mecanismos, aptos a sugerir prognóstico e terapia. A soma de sintomas como formulação diagnóstica coloca a Psiquiatria fora do fluxo das ciências contemporâneas” (4). Kerr-Correa alerta que “apesar do DSM-III-R dizer-se ateórico, como o DSM-III (e os Cid-10 e DSM-IV, agregamos), não o é; a subdivisão de transtorno do pânico com agorafobia, sem agorafobia, agorafobia sem pânico, etc. supõe, por exemplo, a existência de quadros clínicos diferentes, com evolução, hereditariedade, prognóstico e tratamento (em maior ou menor proporção) também diferentes” (5). Kerr-Correa, em sua leitura dos códigos recentes, denuncia um certo pragmatismo militante e ingênuo presidindo a construção dos diagnósticos mais populares da Psiquiatria atual. Paim é também bastante esclarecedor quando nota que “as categorias da CID-10 se destinam ao registro de diagnósticos (função nosográfica) e não a fazer diagnósticos (função nosológica), ainda que possam ser empregadas nesse sentido, isto não é recomendável, pelo menos em Psiquiatria” (6). A opinião destes autores, psiquiatras prestigiados, se por um lado deixa a esperança de recuperar um diálogo inteligente com a Psiquiatria; de outro lado apoia a proposição deste escrito, no que ele alerta que o uso da CID-10 não é mais que uma referência.
Levando a discussão alguns pontos além, Ramadam é bastante enfático ao lembrar que com a Psiquiatria “inaugura-se uma nova propedêutica, não devida, apenas, às condições históricas apontadas, mas, principalmente, graças a uma divergência radical entre sintomas e sinais, até hoje persistentes” (6). E completa advertindo que “nas grandes psicoses raramente o paciente se queixa, não declara sintomas” (6) E quando o faz, queixa-se “dos outros... de perseguidores imaginários” (6). Desta forma, o sintoma é substituído por sua certeza de que o que o aflige não é mental. E Ramadam exemplifica, comentando “o jovem que procurou o otorrinolaringologista no afã de extrair cirurgicamente do ouvido um transistor que... lhe fazia ouvir vozes que comandavam seus atos e pensamentos” (6). Como faz Ramadam, ainda é possível citar a convicção encontrada na síndrome de Cotard sobre o apodrecimento de seus órgãos internos, a paralisia da histérica e a patogenia e a medicina particular que os hipocondríacos constituem. Tudo para demonstrar como “deslocou-se o espaço do sintoma, extrapolando o corpo e divergindo dele na localização e nas funções” (6) e frisar que “não há convergência entre o foco do olhar do médico e do paciente. Não há causalidade linear possível, nem espaço para o reducionismo simplista” (6).
Isto é posto para deixar bem declarado que, se a CID-10 é aqui um guia, o é pela sua popularidade, penetração no meio médico e seu caráter oficial e não pela reificação de suas categorias ou por considerá-las mais verificáveis e confiáveis que qualquer outra classificação.

A toxicomania na CID-10

Abaixo estão expostos os itens referentes à toxicomania, como apresentados na CID-10. Com os termos a seguir pretende-se englobar a multiplicidade de fenômenos que envolvem o uso de drogas. Desde as condições agudas e passageiras até a condição crônica que inclui os estados psicóticos e demenciais.

F10 ¾ F19

Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de substâncias psicoativas
Visão geral deste bloco
F10. - Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso do álcool
F11. - Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de opióides
F12. - Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de canabinóides
F13. - Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de sedativos ou hipnóticos
F14. - Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de cocaína
F15. - Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de outros estimulantes, incluindo cafeína
F16. - Transtornos mentais e de comportamento decorrentes ao uso de alucinógenos
F17. - Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de tabaco
F18. - Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de solventes voláteis
F19. - Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de múltiplas drogas e do uso de outras substâncias psicoativas
Códigos quatro a cinco dígitos podem ser usados para especificar as condições clínicas, como se segue:

F1x.0 Intoxicação aguda

         .00  Não complicada
         .01  Com trauma ou outra lesão corporal
         .02  Com outras complicações médicas
         .03  Com “delirium”
         .04  Com distorções perceptivas
         .05  Com coma
         .06  Com convulsões
         .07  Intoxicação patológica
F1x.1 Uso nocivo
F1x.2 Síndrome de dependência    
         .20  Atualmente abstinente
         .21  Atualmente abstinente, porém em ambiente protegido
         .22  Atualmente em regime de manutenção ou substituição clinicamente supervisionado (dependência controlada)
         .23  Atualmente abstinente, porém em tratamento com drogas aversivas ou bloqueadoras
         .24  Atualmente usando a substância (dependência ativa)
         .25  Uso contínuo
         .26  Uso episódico (dipsomania)
F1x.3 Estado de abstinência
         .30  Não complicado
         .31 Com convulsões
F1x.4 Estado de abstinência com “delirium”
         .40  Sem convulsões
         .41 Com convulsões
F1x.5 Transtorno psicótico
         .50  Esquizofreniforme
         .51  Predominantemente delirante
         .52  Predominantemente alucinatório
         .53  Predominantemente polimórfico
         .54  Predominantemente com sintomas depressivos
         .55  Predominantemente com sintomas maníacos
         .56  Misto
F1x.6 Síndrome amnéstica
F1x.7 Transtorno psicótico residual e de início tardio
         .70  “Flashbacks” (revivescências)
         .71  Transtorno de personalidade e de comportamento
         .72  Transtorno afetivo residual
         .73  Demência
         .74  Outro comprometimento cognitivo permanente
         .75 Transtorno psicótico de início tardio
F1x.8 Outros transtornos mentais ou de comportamento
F1x.9 Transtorno mental e de comportamento não especificado
        

     Estes são os termos pelos quais a Psiquiatria tem codificado os acontecimentos em torno das vicissitudes da toxicomania. Alguns deles são de conhecimento comum, outros têm a especificidade própria dos conceitos médicos. E, por mais que não seja possível e nem recomendável a reificação destes conceitos, estão expostos, pelo menos, para que eles sejam conhecidos. Se ao psicanalista estes conceitos são úteis, não há como fazer uma afirmação peremptória.


Acontecimentos toxicomaníacos e a Psicanálise


        Estando o psicanalista dirigindo a cura de um sujeito submisso à droga, obviamente, aquele não escolhe e nem determina quais manifestações acabam por ocorrer durante o percurso de seu analisante. Não obstante, é interessante que este psicanalista possa perceber que não se deduz todos os acontecimentos que se dão com o toxicômano da transferência, da resistência, da inibição ou do recalque. Como proposto em trabalho anterior, as drogas introduzem o psicanalista em uma novidade: a constituição de uma fantasmagoria em curto-circuito entre o Real e o Imaginário que prescinde do Outro (8).
Assim, entre as manifestações clínicas não escolhidas pelo analista estão aquelas que dependem mais decisivamente da ação bioquímica da droga ou das drogas em questão. Não obstante, nem sempre esta advertência teve valor. Em um passado não muito distante, notadamente no final dos anos 50 e primeira metade dos anos 60, alguns psiquiatras e psicoterapeutas de má orientação psicanalítica imaginaram que o uso de psicotrópicos – em especial, os alucinógenos – favoreceria o acesso ao recalcado e ao não realizado, driblando as formações do inconsciente, apressando e facilitando a fala e a cura. Uma posição tão curiosa quanto desconhecedora da natureza linguageira do inconsciente. Exemplarmente, Melechi (9) diz que a literatura com a qual o laboratório Sandoz apresentou, em 1947, a dietil-amida do ácido lisérgico (LSD) para a comunidade psiquiátrica, supunha que esta droga seria terapeuticamente útil em duas vias: para facilitar a manifestação do material reprimido em pacientes que sofrem de ansiedade e perturbações obsessivas e por habilitar os psiquiatras a um “insight” do mundo de idéias e sensações mentais dos pacientes. Ainda nos anos 50, Sandison em um entusiasmado estudo intitulado “Psychological aspects of the LSD treatment of the neurosis” (10) expunha a vantagem desta “nova droga para auxiliar o inconsciente a revelar seus segredos” (10). É claro que uma leitura com estes traços inclui uma noção de “inconsciente” que guarda a verdade como que encaixotada à espera da chave que a abrirá. Não se trata de um inconsciente estruturado tal como a linguagem, que põe a sua verdade em jogo por meio dos equívocos aos quais a palavra está destinada.
Pensar e propor uma cumplicidade entre a droga e a fala neste teor é, evidentemente, discorrer em um diapasão oposto ao produzido na presente linha de pesquisa. É como encampar o dito popular sobre a verdade inequívoca que é revelada durante os estados de embriaguez. Nada em contrário à consideração de que o uso de drogas pode servir à pusilanimidade e representar uma declarada vantagem nas circunstâncias onde alguma acusação ao sujeito pode vir a embaraçá-lo, no registro jurídico ou não. A confissão de que “encontrava-se sob o efeito de drogas” pode converter-se em argumento atenuante quanto à responsabilidade de um sujeito pilhado em ato desvairado. Isto é para frisar que a “novidade clínica” que o toxicômano apresenta não é uma categoria que venha ensurdecer o analista e transformá-lo em parceiro da mentira e da justificativa irresponsável. Importante é o psicanalista, se algum sentido a proposta faz, saber que algumas das circunstâncias que ocorrem no percurso de seu analisante não são imediatamente acessíveis à palavra. E esta proposição, a meio passo entre a constatação de um fato e a invenção de um conceito, que sirva à manutenção do psicanalista com o toxicômano. Exatamente para que este ser não fique à mercê dos psiquiatras biológicos e do exército disciplinador de mútua ajuda. A Psicanálise deve manter viva uma resposta ao mal-estar da pós-modernidade.
Recorrendo, então, à CID-10 é interessante notar que as intoxicações agudas acompanhadas pelo “delirium”, distorções perceptivas, coma ou convulsões (categoria F1x.0) estão entre as manifestações não imediatamente acessíveis à palavra e, dependendo da intensidade do quadro, caberia ao psicanalista sustentar o encaminhamento do analisante a tratamento de emergência, sem considerar-se derrotado. Há que não esquecer que, por vezes, ocorrem acidentes não dedutíveis do campo transferencial. E, mesmo quando da transferência os deduzimos, ainda resta a autonomia própria do efeito das drogas. Por mais que fosse auspicioso que o drogadicto, ao procurar tratamento, já diminuísse ou suspendesse o uso das drogas, estaríamos no seio de uma contradição clara: se tal é possível, para quê a cura? De onde a demanda “preciso parar com as drogas?”. Certamente, não estaria em tratamento um legítimo toxicômano. Além do mais, se o psicanalista supõe o sujeito, não precisa obrigar o ser a uma disciplina férrea e propor a aceitação no tratamento apenas se o indivíduo parar com o uso das drogas. E isto, sem mostrar-se minimamente cúmplice com as sucessivas passagens ao ato de seu paciente. Há que considerar que a Psicanálise deve propor à cultura uma via distinta para o tratamento do toxicômano. Este estilo que propõe a abstinência desde o início, como condição para o tratamento, caracteriza mais os grupos de mútua ajuda e as abordagens psiquiátricas por eles inspirados. Falta a estes pensares a noção de sujeito.
Como ilustração, reproduz-se a descrição da intoxicação alcóolica aguda, não complicada, encontrada no texto de Mayer-Gross, Slater e Roth (12): “Depois de um curto estágio de ‘excitação’ devido a remoção das influências inibitórias dos centros superiores, há uma redução da eficiência psicológica. A falta de controle muscular, a atenção reduzida, a percepção sensorial embotada e a lentidão do pensamento tornam-se óbvias. As associações são superficiais;...; a fixação é enfraquecida e a memória para acontecimentos é fragmentária e incerta.
As inibições adquiridas, o autocontrole e a discrição desaparecem ou são submersas em ondas de emoção de um primitivo tipo... . No campo consideravelmente reduzido da atividade mental, o desempenho [social] é fácil e considerado com desprendimento...a enganadora sensação de calor..., a insensibilidade à dor...[e] uma sensação de superioridade e força...
[este estado pode ser] seguido de uma narcose mais profunda; andar cambaleante, fala perturbada, ataxia geral, tremor, vertigem, vômito e inconsciência. No lado mental, os mais severos níveis de intoxicação são... acompanhados por aumento de irritabilidade, explosões de raiva e violência. ... E, completando, não é impossível chegar à abolição radical do fenômeno consciente e o alcoolista penetrar no coma alcoólico” (12).
Um outro exemplo é a intoxicação pela cocaína. Segue a descrição de Kaplan e Sadock (13): “A intoxicação por cocaína pode causar ausência da sensação de fadiga, agitação, ansiedade, fala-se muito e apressadamente. É possível o aparecimento de ideação paranóide, agressividade, aumento do interesse sexual, elevado senso de consciência [de um saber], sensação de grandiosidade e hiperatividade como manifestações psíquicas. Os sinais físicos incluem taquicardia, hipertensão, dilatação pupilar, calafrios, insônia e movimentos estereotipados. O uso da cocaína também está associado à morte súbita por complicações cardíacas e ‘delirium’ ” (13).
Estes dois exemplos bastam para o reconhecimento de que, durante o efeito da droga, aparece uma estrutura que mais do que realçar os traços particulares e privados de um sujeito singular, na verdade, o submerge em uma generalização uniformizante. É, certamente, neste sentido que não é conveniente julgar a droga um auxiliar de qualquer espécie para o psicanalista. Não há a revelação de nenhum discurso inconsciente e nem o sujeito torna-se predisposto à verdade. A cena é melhor definida pela estereotipia. E, ao mesmo tempo, os exemplos acima demonstram o quanto o efeito das drogas não se limita ao psiquismo e coloca em campo o corpo total.
Não obstante, precisando o escrito acima, o reconhecimento de que a intervenção química desloca o sujeito da singularidade não é para que o psicanalista tome o rumo da desculpabilização, da aceitação ingênua da justificativa que irresponsabiliza. Nem sugere que o psicanalista – mestre das funções da fala – mergulhe na concepção própria àqueles que vêm na linguagem apenas a função instrumental e unidimensional, que supõe uma relação biunívoca entre as palavras e os referentes (14, 15), sem salientar a condição autônoma das leis da linguagem. O que se diz deve ter como conseqüência a modulação da escuta do psicanalista. Assim, se o alcoolista ou o cocainômano afirma que não se lembra de um ato específico transcorrido durante a intoxicação, que esta declaração seja – via de regra – posta em dúvida, por mais que todo o discurso neuropsiquiátrico afirme que, nos estados agudos de intoxicação, a memória de fixação esteja prejudicada. No texto anteriormente citado (8), desenvolveu-se a hipótese de que ocorre a construção de uma fantasmagoria que passa a habitar o cerne do ser. Esta fantasmagoria é constituída na relação do sujeito com o efeito da droga após sucessivas intoxicações. Não obstante, a linguagem, a existência e as marcas significantes e desejantes não são abolidas e a topologia borromeana que define o sujeito lá está. Esta lá obscurecida em graus variáveis, mas não desconstruída.
Posto isto, é posição deste escrito que os estados agudos de intoxicação pelas drogas não reúne todos os elementos que permitem à escuta do psicanalista sacar a verdade que surge da inevitável predestinação da palavra ao equívoco. Isto é, a presença do sujeito sob o efeito de drogas, na sessão analítica, deve produzir um peculiar estado de atenção não flutuante em quem escuta. E não se desconhece, ao fazer esta afirmação, qual é a regra fundamental ao psicanalista durante o ato analítico. Salvo, claramente, se o psicanalista em questão está entre aqueles que vêm nas drogas um meio interessante de revelação... .
Outro momento no qual o psicanalista deve estar atento a seus limites corresponde ao estado de abstinência. Genericamente, o estado de abstinência, também denominado síndrome de abstinência, é um grupo de sintomas que aparecem horas ou dias após o uso da última dose. Usualmente, a abstinência manifesta, como nos estados de intoxicação aguda, uma boa mescla de sintomas mentais e físicos. Como exemplo, estão descritos a seguir os estados de abstinência associados ao uso do álcool e da heroína.
Segundo Walker (1), após algumas horas da última ingestão alcóolica, surgem as manifestações de hiperatividade autonômica “com pulso rápido, sudorese, tremores”. Este quadro pode acompanhar-se de “pesadelos e alucinações visuais ou táteis”. A principal complicação, neste período, é a ocorrência de convulsões. Este estado pode evoluir para um genuíno “delirium tremens”. O “delirium tremens” implica em uma intensificação dos sintomas acima referidos, aos quais somam-se a obnubilação da consciência, a desorientação têmporo-espacial, além do agravamento dos fenômenos orgânicos com a possível ocorrência de “desidratação, hipertermia e [risco de] colapso circulatório”. O “delirium tremens” alcança o índice de mortalidade “mesmo em condições ideais de tratamento [de] 10 a 15%”.
Ritson e Chuck (16) descrevem como segue a síndrome de abstinência da heroína: “A síndrome consiste na sensação de cansaço, fadiga e medo concomitante a sintomas físicos desprazerosos como dores abdominais, cólicas, náuseas, desmaios, sudorese, insônia, irritabilidade, rinorréia, excessivo lacrimejamento e soluços. Os sintomas aumentam a intensidade por 48 horas e são extremamente desconfortáveis, entretanto raramente vão além destes sintomas físicos”. Um intenso furor para repetir o consumo da droga acompanha este estado.
Se as descrições acima indicam que a síndrome de abstinência pelo álcool é mais grave que a pela heroína, isto não permite uma conclusão imediata e simplista que vise a categorização das drogas em mais e menos graves. Se há aqueles que verão neste ato, classificar as drogas em relação à periculosidade, um campo interessante é mister lembrar o que ocorre com o usuário da cocaína. É sabido que o uso constante da cocaína pode trazer dificuldades marcantes à existência do sujeito e não é acompanhado por um estado de abstinência que traga, em si, algum risco à integridade do ser. Kaplan e Sadock (13) assim o caracterizam: “O sinal mais proeminente da abstinência à cocaína é o desejo intenso pela droga”. Isto é, distintamente do álcool e da heroína, a abstinência da cocaína resume o problema do adicto e não introduz novidades ao curso da questão.
Por outro lado, drogas de efeito psíquico identificadas com a terapêutica dos distúrbios mentais são capazes de induzir estados de abstinência mesmo quando corretamente prescritas por médico competente. Os antidepressivos e benzodiazepínicos comumente utilizados para o tratamento farmacológico de quadros ansiosos e depressivos, além de coadjuvantes na terapêutica de quadros esquizofrênicos, delirantes e maníacos, estão listados entre elas. No caso dos antidepressivos, que foram reconhecidos como causadores de abstinência mais recentemente, é curioso o uso de eufemismos como “síndrome de retirada” ou “síndrome de interrupção do uso” (17, 18) para a referência a um simples e corriqueiro estado de abstinência com “sintomas provavelmente leves e de breve duração” (17). Segundo Calil (17), os sintomas mais freqüentes “agrupados em seis categorias principais, foram: 1. gerais: tonturas, vertigens, sudorese, cefaléia, insônia; 2. transtornos sensitivos ou sensoriais: parestesias, torpor, transtornos visuais; 3. motores: falta de equilíbrio e tremores; 4. neuropsiquiátricos/psicológicos: ansiedade, agitação, alucinações, confusão e mudanças no estado de ânimo; 5. gastrintestinais: fundamentalmente, náuseas; 6. outros: palpitações. Apesar da diversidade dos sintomas notificados, os mais freqüentes foram tonturas, parestesias, tremores, ansiedade, náuseas e palpitações” (17).
No caso dos benzodiazepínicos, os sintomas que compõe a síndrome de abstinência são, principalmente, manifestações autonômicas como tremores, taquicardia, sudorese. Podem ocorrer espasmos musculares, cefaléias além de distúrbios gastrintestinais e insônia. A hipersensibilidade a som e luz, parestesias e hiperosmias eventualmente incomodam, ao lado da perda de peso e hipertensão. No lado mais propriamente psíquico, ideação paranóide, ansiedade, fenômenos de despersonalização e desrealização (19, 20).
È de conhecimento geral, que a abordagem farmacológica do sofrimento humano tem ocupado uma dimensão exageradamente ampla no arsenal terapêutico dos psiquiatras. A referência a problemas similares entre as drogas terapêuticas e as de uso ilegal não deve surpreender a ninguém, se bem que não é recomendável atribuir, genericamente à comunidade psiquiátrica, despreocupação com este fator. A referência à história vai encontrar que tanto o ópio quanto a cocaína foram largamente testados e usados como terapêuticos e o tetra-hidro-canabinol, princípio ativo da maconha, tem sido recomendado, atualmente, para o tratamento de náuseas decorrentes da quimioterapia. A referência ao sítio de ação destas drogas e sua relação com os neurotransmissores, é evidente que os fármacos psicoativos e as drogas ilegais devem exercer efeitos em sistemas bioquímicos similares. A condição jurídica de droga “legal” ou “ilegal” não diz nada sobre o impacto delas na subjetividade e na organicidade. E, para lançar uma pergunta, não é importante que os psiquiatras se interroguem se a alta estimação da função dos fármacos na terapêutica não traz como conseqüência funesta a colaboração com uma cultura cada vez mais toxicomaníaca e menos interpessoal?
Além das condições acima citadas – a intoxicação aguda e a síndrome de abstinência – encontramos associados ao uso de drogas transtornos psicóticos, afetivos e demenciais. Estas condições também podem ser incluídas entre as circunstâncias onde o psicanalista deve estar razoavelmente alertado sobre o fracasso dos poderes da palavra na constituição do atravessamento do fantasma. E sem que tal cuidado signifique deixar o sujeito à própria sorte ou submisso a um único discurso de tom tão falso quanto triunfalista.

Epílogo

Este texto é dirigido aos psicanalistas que não cedem diante do toxicômano e têm a intenção de fazer falar o evanescente sujeito deslocado e enevoado pela drogadicção. Sujeito que, muitas vezes, parece radicalmente submergido.
        Esta constatação clínica obrigou a teorizações que, se não toma o organismo como fundamento de sua intervenção (e não há como ser de outro jeito, se estamos no campo da Psicanálise!), admite que a toxicomania escapa aos esquemas clássicos das explicações psicanalíticas. E isto se deve ao detalhe de que quando o símbolo interpelou a carne, não a desfez em letras. A carne acompanha o símbolo enquanto o corpo vive. E é com o corpo que a droga opera, por mais que a cultura e a existência singular determinem os elementos estruturais que favorecem ou dificultam que certas respostas ao mal estar sejam mais encontradas que outras. E, apesar da discussão não ter chegado ao fim, habitamos uma cultura onde a resposta toxicomaníaca – oficial ou não – tem o estatuto de discurso válido.
E não é conveniente que o psicanalista se esqueça que, ao ouvir e falar com o toxicômano, fala e ouve com quem crê que sabe onde o corpo goza mais e este saber é efeito do curto caminho constituído entre a falta e o prazer que prescinde do significante e que é cuidadosamente pavimentado pelo drogadicto.
Assim, está aqui mais um exemplo da qualidade de questões que envolvem o uso das drogas. Não há pensamento linear que encampe e responda à complexidade do fenômeno. A complexidade é derivada da característica própria às drogas que é exercer efeitos psíquicos, produzir um discurso e uma ideologia, a partir da intervenção primária no arcabouço neurobioquímico do organismo, apesar da totalidade das manifestações do toxicômano não ser explicada por este fato. Há ali, por baixo do pó, da pedra, da seringa, do selo, do charuto, o sujeito. É o tempo para a escuta que dirá até quando ele pode falar.
 

Bibliografia

 1.   Walker JI. Urgências psiquiátricas devidas ao alcoolismo. In: Psiquiatria e Medicina Interna. Editores: Fortes JRA, Miguel Filho EC, Ramadam ZBA, Arruda PV. Anais do 1o Congresso Brasileiro de Psiquiatria e Medicina Interna, 9 a 12 de abril de 1987; 1988. p. 209-211
2.   Lacan J. Função e campo da palavra e da linguagem em Psicanálise. In Lacan J, “Escritos”. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro; 1998. p. 238-324
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 Durval Mazzei Nogueira Filho, abril 2000

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