Márcio Peter de Souza
Leite
Crônica do I
Encontro Latino-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise, módulo
Medicina e Psicanálise, outubro/2001
Inicialmente, o autor expõe
a definição e a sistematização
das toxicomanías feitas no CID. Em seguida, a explicação da neurobiologia é confrontada com a explicação psicanalítica. A conclusão desse confronto aponta que, no primeiro modelo, o uso de drogas aparece unicamente relacionado aos efeitos fisiológicos das substâncias;
enquanto que para o modelo psicanalítico importa tanto o contexto histórico e social do uso de drogas quanto o particular do desejo de cada sujeito.
Lacan entende a sociedade
atual como resultado da incidência do capitalismo no discurso do mestre. Além do mais, atribui a Marx a descoberta
do sintoma. O que o faz conceber a cultura como reguladora dos modos de gozo do sujeito. Por sua vez, é
esta regulação que submete o
sujeito aos discursos dominantes.
A partir
dessa vertente, o autor aponta a possibilidade de se admitir, dentro da
psicanálise, a questão do sintoma social; o que permite levantar a hipótese
sobre a existência de uma toxicomania generalizada que, no sujeito pós-moderno, seria
o efeito do predomínio do discurso capitalista.
Para o psicanalista que segue a orientação lacaniana, todas as diferentes
manifestações que os sintomas apresentam são entendidas como modos de gozo de um sujeito.
Disto decorre que as toxicomanías podem ser entendidas como uma das formas de gozo do sujeito. Quer dizer,
são uma
das múltiplas formas que o sujeito inventa para presentificar uma completude e,
com isso, evitar a angústia.
Daí
que o conhecimento das toxicomanias se impõe a todos os psicanalistas, mesmo
que a condução do tratamento dos
toxicômanos não seja o eixo primordial da prática analítica.
Entre
as explicações para as toxicomanias, existem duas tendências principais e
antagônicas. A
primeira -
fundada no modelo médico - é representada pelos critérios do CID que
produz uma organização do campo das
toxicomanias. Este modelo tem a característica de orientar-se exclusivamente pelos efeitos
fisiológicos das substâncias.
O CID-10 [1] é a convenção diagnóstica,
obrigatoriamente, compartilhada
pelos profissionais da saúde
mental. Neste referencial, as toxicomanias são apresentadas como transtornos
relacionados
a determinadas substâncias. Estes transtornos são divididos em 4 itens:
A
dependência a uma substância é definida pela presença de um agrupamento de
sintomas (cognitivos, comportamentais e
fisiológicos) que, apesar dos problemas causados e classificados, indicam que o
indivíduo continua fazendo uso dessa substância. O diagnóstico de dependência é feito a partir
dos seguintes critérios:
•
Existência
de tolerância que é a necessidade de se usar uma quantidade progressivamente maior da substância para que se
produza o efeito inicial ou anterior.
•
Presença
de uma síndrome de abstinência quando ocorre a
retirada da substância.
O
abuso de uma substância é caracterizado pelas consequências - adversas,
recorrentes e
significativas
- relacionadas ao uso repetido de uma substância. Os critérios para o
diagnóstico
de abuso de
substância são:
•
Fracasso
em cumprir as obrigações no trabalho e na escola.
•
Uso
de substância na qual se apresenta perigo físico.
•
Existência
de problemas legais.
•
Uso
continuado de substância, apesar da presença de problemas sociais.
A
intoxicação, devido a sua ingestão recente, caracteriza-se pelo desenvolvimento
de uma síndrome reversível
e específica a uma substância.
A
abstinência caracteriza-se por uma alteração comportamental mal-adaptativa e
específica a
uma
substância com concomitantes fisiológicos e cognitivos, devido à cessação
ou redução do
uso pesado e
prolongado de uma substância.
As
substâncias que produzem adição enumeradas pelo CID são:
álcool, anfetaminas, cafeína,
canabis,
cocaína, alucinógenos, inalantes, nicotina, opiódes, ansiolíticos.
Também deve-se levar em
consideração a possibilidade de existirem adição a comportamentos
(e
não unicamente a substâncias), como por exemplo: a adição ao trabalho, ao uso
de computador,
ao video-game, à comida,
à compras, ao jogo, etc.
Em
contrapartida, existem autores que relativizam o modelo médico que, como se
pode perceber, não questiona a causa
do uso das drogas. Esses autores, valendo-se de dados que transcendem os diversos efeitos
fisiológicos, tentam significar a motivação do usuário de drogas.
Nesta
segunda abordagem, recorre-se à história que, freqüentemente,
recorre a uma explicação
sobre o
antigo uso das drogas que, por sua vez, aparece referido como um meio de
escapar da opressão, da angústia e da dor.
Para
alguns comentadores, o importante seria os diferentes usos que foram feitos, em
diferentes épocas e contextos; o que por
si só já mostra o abandono do estudo centrado somente nos efeitos fisiológicos das
substâncias.
Os
diferentes usos, em diferentes épocas e contextos, introduz outras variáveis
para a definição
de
toxicamania; a ponto de uma autora, Sissa (1998) [2], chegar até mesmo a falar
em uma filosofia da droga.
Seguindo
a mesma posição, Escohotado (1997) [3] lembra o fato de que os rituais
religiosos sempre vinham seguidos de
substâncias psicoativas. Por exemplo, discorre sobre o lugar, anteriormente, reservado à cocaína:
na época dos Incas, as folhas de coca - como
símbolos divinos - eram guardadas
exclusivamente para corte. Conta também que, na Roma imperial, o uso do vinho era proibido para
as mulheres e liberado unicamente aos homens maiores de 30 anos; ou ainda que, na Rússia,
beber café foi um crime punido com tortura.
Apresentada
deste modo, a questão das toxicomanias acaba não só ultrapassando o modelo médico, quanto impondo uma
pergunta: por que, em diferentes épocas, uma mesma substância produz reações e atos
diferentes?
Há
quem assinale que o uso de drogas sempre mostra uma mutação cultural. Esta
mutação questionaria o lugar do gozo
sexual como o referente dos outros gozos.
Considerando
as várias significações que, em diferentes épocas e lugares, foram dadas às drogas, pode-se inferir que o
problema da droga transcende o nível da experiência.
Por
isto, não basta identificar somente a origem química de uma determinada droga,
nem tampouco distinguir os motivos
ou razões que atraem a sua procura, sejam eles definidos como hábito, vício, curiosidade ou
fuga.
Dentro
desta pespectiva para se entender os motivos do uso de substâncias psicoativas,
deve-se levar em conta que este uso se
inscreve em uma visão de mundo.
O
risco produzido por esta visão das toxicomanias é que, ao se privilegiar o
aspecto multiforme dos uso de substâncias, pode-se
concluir que o toxicômano não existe.
É
o caso de Zafiropoulos (1994) [4], para quem as condições de produção da
categoria do
toxicômano,
mostra que as toxicomanias encontram sua unidade no emprego de um arbítrio cultural. O que divide o
universo das substâncias em duas classes opostas: as substâncias proibidas e as lícitas.
Daí que, para este autor, nem a
periculosidade do produto nem seus efeitos potenciais de
dependência
poderiam justificar seu agrupamento em uma classe única.
Frente
à pergunta
sobre as causas da dependência e do abuso, as respostas oscilam também entre dois modelos: um primeiro
que sugere a existência de uma predisposição genética e que
é a resposta dada pela
psiquiatria biológica. E um segundo modelo que entende as toxicomanias como conseqüências das vicissitudes do
desejo e que é a resposta da
psicanálise.
A
psiquiatria biológica - ao privilegiar um modelo fisicalista para a explicação
da conduta humana - ressalta o aspecto
metabólico do uso de substâncias, não dando lugar para o desejo e, com isso, negando o
particular da história de cada sujeito.
Como
exemplo desta concepção, no livro Reaprendendo com a drogadição encontra-se uma proposta do modelo
predominantemente neurobiológico, onde a toxicomania é definida como: "Interação do organismo
com uma substância química, que evolui de maneira multiforme, segundo as condições cerebrais,
psíquicas e sistêmicas do paciente e (segundo) às alterações bioquímicas que se seguem ao
abuso da substância” [5].
Um
outro modelo para a explicação das toxicomanias é o produzido pela psicanálise,
que inclui como motivo do uso de
substâncias os contextos histórico e social que determinam as significações da droga, bem
como a história particular de cada sujeito.
Freud, no texto Mal-estar na cultura,
perguntando-se sobre a condição humana, concebe-a como uma busca de prazer.
Prazer que, neste momento de seu desenvolvimento teórico, é uma satisfação que vai além do
princípio do prazer.
Neste
sentido, a busca de prazer que condiciona o sujeito não é uma extravagância
hedonista, mas sim uma consequência do
circuito pulsional que condiciona sua satisfação.
Freud reconhece três saídas para o
mal-estar na cultura, logo três maneiras do sujeito encontrar a ilusão de uma satisfação
pulsional: a neurose, a sublimação e a droga. Então, as drogas se encontram no coração da teoria
psicanalítica que propõe o psíquico como um aparelho que busca recuperar uma satisfação
incontrolável.
O
modelo psicanalítico define os sintomas neuróticos como soluções de
compromisso, ou seja,
como
substitutos de desejos inconscientes recalcados. As toxicomanias também foram explicadas por Freud pelo
mesmo mecanismo dos outros sintomas, porém com a particularidade de serem uma substituição do
modelo privilegiado de satisfação que é o da satisfação produzida pelo gozo masturbatório.
Para Freud, o gozo masturbatório
caracterizaria o que seria a verdadeira dependência do ser humano, pois este gozo ao
representar a menor distância entre o desejo e sua realização se coloca como modelo do gozo
ideal. A consequência disto é que, para Freud, a droga não seria o agente da dependência, mas sim
o agente do
gozo obtido
Seguindo
a mesma lógica de Freud, em 1975, Lacan, abordou
a questão, na sessão de
encerramento
das Jornadas de Estudo dos Cartéis da EFP, onde disse: "A droga é o que
permite ao sujeito escapar ou romper o
casamento com seu pequeno pipi” [6].
Afirmação
que é para ser entendida no sentido da droga ser aquilo que permite ao sujeito escapar ao gozo fálico, logo à castração.
Nota-se que esta frase não é uma definição de toxicomanía, mas
sim uma definição de droga.
Portanto,
na visão de Lacan, a droga é um objeto que
concerne ao gozo. Por sua vez, o gozo é um
termo que se refere à satisfação da pulsão.
A
particularidade da droga é que ela permite obter um gozo sem passar pelo Outro,
cujo exemplo principal é a
masturbação. Como a cultura se constrói sobre a renúncia pulsional, então estar na cultura significa
obter gozo da própria renúncia ao gozo.
É
isso o que quer dizer função fálica, ou seja, quer dizer que o sujeito goza da
sua castração. O
gozo fálico
é um gozo regido pela castração. É em torno deste gozo que as sociedades estão reunidas. O gozo fálico é a
afirmação do discurso do mestre, é o gozo que articula o Real e Simbólico, por isso, ele é
vivido fora do corpo e, portanto, refere-se à satisfação
da fala.
Com
isto posto, então podemos entender aquela fórmula - da droga como única forma
de romper o casamento do sujeito
com o pipi - como uma ideia da droga
enquanto produtora de
uma ruptura
com o gozo fálico. Dito de outro modo, a droga serve ao sujeito para ele negar
a castração.
Assim, a tese de Lacan sobre
as toxicomanías é
uma tese de ruptura, pois, ao apontar a
possibilidade
de escapar do gozo fálico, ele compromete toda a sua teoria dos gozos. Isto
porque
o poder da droga é fazer o sujeito ficar fora da castração, fazer o sujeito
dizer não à função paterna, sem que haja
foraclusão do Nome-do-Pai.
A
toxicomania tem importância para todos os psicanalistas na medida em que impõe
a seguinte pergunta: ela responde à ordem
do desejo particular ou introduz a questão da existência de sintomas que são chamados de
sintomas sociais?
Sintoma
social - mas não no sentido que aparecem no campo social (como greves,
religião, guerras), nem no sentido de uma
psicopatologia social - que entenderia que um discurso pode engendrar sintomas
determinados.
Para Freud, a determinação dos sintomas é
quase que exclusivamente subjetiva. Para Lacan, o sintoma também é uma maneira
singular de gozar que não vai de encontro ao ser social. O ser social é a cultura, é a
civilização enquanto definidora da distribuição de gozo entre os diversos sujeitos.
Cada civilização oferece modelos fixos para o sujeito satisfazer as pulsões. Em
outras palavras, a civilização define
o perfil de gozos toleráveis socialmente.
A
leitura que Lacan fez de Marx tornou
possível uma reflexão sobre a noção de sintoma social em psicanálise. Isto porque, para Lacan, Marx foi
o inventor
do sintoma.
Melhor dizendo, desde uma perspectiva marxista,
o sintoma seria o sinal
de um disfuncionamento e de uma
doença do corpo social. Ou ainda: para Marx, o
sintoma seria a metáfora da verdade.
A
questão então seria a de se saber se a psicanálise seria um sintoma social.
Literalmente,
Lacan diz
que Marx foi
o inventor do sintoma porque postulou o sintoma como "retorno da verdade como
tal na falha de um saber” [7]. A partir desta referência - do sintoma definido por Marx -
Lacan define
o que é o sintoma social: "Só há um sintoma social: cada indivíduo é realmente um
proletário, quer dizer, não tem nenhum discurso com o qual fazer laço social (...)’’ [8]. Cabe lembrar que, para Lacan, proletário
é aquele que foi despojado da sua
função de
saber [9].
Lacan faz uma leitura da sociedade
atual, onde diz que a mudança do mestre antigo para o moderno (ou para o capitalista)
ocorreu em função de uma outra mudança: a que diz respeito a uma nova relação que o sujeito
atual estabeleceu com o saber. Por isto, muitos autores [10] acham que, ao definir a droga
como sendo uma ruptura com o gozo fálico, impõe-se relacionar o fenômeno toxicomaníaco com a
predominância do discurso capitalista. O que, em última instância, faz a droga surgir
como objeto de mercado. É neste sentido que o toxicômano recusaria o gozo fálico: o
toxicômano recusa o gozo fálico enquanto sustenta a competição social, recusa o falo enquanto
sustenta a circulação no mundo social.
É
claro que as drogas sempre existiram, mas, para uma visão que aproxima as
toxicomanias ao
que se
poderia chamar de sintoma social, pode-se pensar que hoje o uso das drogas
estaria condicionado pelas regras do
mercado. Mercado que tem, como imperativo de consumo, um novo discurso: no caso, o
discurso capitalista.
Segundo
Lacan, o
que caracteriza nossa época é o capitalismo e o discurso da ciência. Em nossos tempos, a ciência tem
sido inteiramente colocada a serviço do discurso do mestre que, por sua vez, foi modificado em
discurso capitalista. Se o mestre antigo se fazia obedecer, atualmente é o capital a quem
temos de obedecer. O mestre contemporâneo é o mercado, e a sua demanda é a produção de
objetos que o trabalho da ciência coloca à disposição
do capital.
A
cultura de hoje é uma cultura claramente capitalista e ela exige que o sujeito
se submeta ao
imperativo
do consumo. A globalização do consumo impôs a produção em massa de objetos que são formas de gozo. Daí que
se pode inferir que tanto a toxicomania, quanto a anorexia, a bulimia, a adição ao
computador, enfim, todas estas formas seriam expressões atuais do malestar
na cultura. Desde este ponto de vista, somos todos consumidores e também somos
todos objetos de consumo.
Sendo
consequente com esta lógica, Sinatra (1998) [11], chegou a propor uma leitura
da situação atual como um momento
onde estaria ocorrendo o que ele chamou de toxicomania generalizada. Este deslocamento
do termo toxicomania é uma ampliação de seu conceito médico somado ao pressuposto da
atualidade, tal como foi admitido por Lacan.
Em
Lacan, as
características da sociedade contemporânea decorre do fato de que, pelos
efeitos do discurso capitalista,
impôs-se ao sujeito encontrar sua completude não mais no ideal, mas sim no gozo.
Quer
dizer que, na sociedade contemporânea, não mais se goza como antes - quando o
sujeito encontrava seu gozo nos ideais,
na honra, na honestidade (etc) - mas goza-se com os objetos de consumo, com os gadjets ou com as drogas.
Numa
época em que, devido ao predomínio do discurso capitalista, há um predomínio do
mais- gozar sobre o ideal, numa época
em que impera o uso do telefone, do fax, da internet - invenções que, para aproximar
as pessoas, acabaram isolando-as mais ainda - pode-se sugerir, como o fez J.-A. Miller [12],
que a
toxicomanía é uma
forma de gozar que corresponderia ao autismo
contemporâneo.
Uma
outra pergunta que a toxicomania coloca ao analista está relacionada às
estruturas clínicas.
As
toxicomanias não são uma quarta estrutura além da neurose, da perversão e da
psicose. É exclusivamente neste sentido
que não existe o toxicômano.
Se
não é uma estrutura, mas uma operação sobre a estrutura, isto se deve à evidência
de que a toxicomania é um sintoma que se
encontra em qualquer uma das estruturas.
Por
outro lado, se são válidas estas considerações, a toxicomania - ou melhor: a
toxicomania
generalizada
- reflete muito mais do que um mecanismo de recuperação narcísica particular de um sujeito, talvez ela seja o
reflexo dos sujeitos estarem sempre colocados entre os discursos e o real de seu gozo.
O
que Lacan introduziu
como sintoma social não deve ser oposto ao sintoma particular. Ao correlacionar o sintoma social
com a ideia de proletário, a definição (de sintoma) passou a implicar a relação do sujeito
com o saber.
Pode-se
então , como faz Askofaré (1997) [13], situar ao lado da teoria geral dos
sintomas, o
sintoma
social enquanto seu conceito conota a universalidade da função do sintoma como função de ex-sistência do
inconsciente.
Ao lado da teoria geral dos sintomas,
articulada à ideia do sintoma social como
efeito do saber no
sujeito, incluiria a proposta de uma toxicomania generalizada, visto ela
decorrer também de uma
posição subjetiva que impõe um modo de gozo determinado pelo discurso
dominante.
Ao
propor uma articulação da psicanálise com a modernidade, teria que se falar
numa relação do
sujeito com
a história?
Lacan, em A ciência
e a verdade
[14], posicionando-se
frente a esta questão, utilizou a expressões
"um certo momento do sujeito”, "um momento historicamente definido” e
"um momento historicamente inaugural”.
O
pressuposto de Lacan de que o sujeito está definido
em relação ao saber é a razão de
temporalizá-lo.
Como o saber muda, o sujeito também muda; o que causa o surgimento de um novo sujeito.
Para Lacan o aparecimento de um novo
sujeito ou de um sujeito que se poderia chamar de moderno está historicamente
localizado a partir da publicação das Meditações metafísicas de Descartes. A operação do Cogito
teria produzido o que Lacan chamou de sujeito da ciência.
Situar
o sujeito moderno como decorrente da operação cartesiana, é
centralizá-lo em relação à uma
razão objetiva. Este sujeito "reflexivo” seria moderno por diferir de um
anterior cuja
característica
seria a de ser o centro do conhecimento.
Em
Lacan, o
sujeito cartesiano é pressuposto da noção de
inconsciente, pois a psicanálise
também
admite o sujeito da certeza como seu fundamento; contanto que, tal como para Descartes, o sujeito possa ter
certeza de si desde que, no seu discurso, se destaquem dúvidas que apareçam como reveladoras de um sujeito dividido.
Desta
forma, já para Freud, o lugar do eu penso é
independente do lugar do eu sou.
Também
os termos ciência moderna, pensamento moderno e era moderna, constantemente referidos por Lacan, mostram
que a sua preocupação estava voltada ao momento histórico no qual o sujeito está inserido.
No
Seminário III [15], sobre as psicoses, Lacan menciona Robinson Crusoé e
afirma que um dos
temas que caracteriza
o pensamento moderno é a ideia de um personagem vivendo só, em uma ilha deserta.
Lacan retoma este exemplo no
Seminário de Um Outro a um outro [16] e sugere que esta ideia representa o começo da era
moderna, pois, para o homem deste tempo, seria fundamental poder afirmar a sua independência e
autonomia frente a todo amo e a todo Deus.
Este
discurso da liberdade que Lacan aborda também é empregado à arte
e à ciência
modernas que, segundo ele, se
caracterizariam pela eliminação do simbolismo religioso dos céus. O que, em última análise, possibilitou
estabelecer os fundamentos da física atual.
Para Lacan, a ciência moderna foi um efeito
decorrido do
monoteísmo que,
por sua vez,
ordenava o
mundo ao redor de um centro e, com isto, instaurava uma concepção unitária de Universo [17].
Ainda
dentro desta perspectiva, a ciência teria sido possibilitada pelo mito bíblico
da criação ex-nihilo, o que teria posto em funcionamento outra condição da
ciência: a potência criacionista do
significante.
Assim
também a resposta Sou o que sou - dada a Moisés pelo
anjo de lavé - é o que fez com que Deus aparecesse como
subjetividade absoluta. Afinal, a resposta não passa de uma tautologia que traz em si o
sentido de tu não saberás da minha verdade. Em última análise, este não saberás sobre a verdade
nada mais é do que a instauração de uma
fronteira entre saber e
verdade.
Se,
por um lado, é válido conceber que o cogito cartesiano foi
o fundamento do sujeito
moderno,
então, por outro lado, também é válido perguntar: e, atualmente, haveria um
outro sujeito produzido por um novo
saber compartido?
A
articulação sujeito-história está presente no que alguns autores vêm chamando
de sujeito pós-
moderno
[18]. O sujeito pós-moderno seria caracterizado por ser um sujeito sem paradigmas
de consenso, ou seja, por ser um
sujeito que sofre da ausência de ideais pré-estabelecidos. Este sujeito, que não tem um saber compartido socialmente,
seria decorrente das mudanças
ideológicas,
inclusive das que estão relacionadas aos costumes sexuais.
Neste
ponto, para avançar com tal questão, caberia uma outra pergunta:
O
sujeito pós-moderno seria uma consequência do novo materialismo introduzido pela neurobiologia atual [19]?
E
mais: como apontou Lacan, seria uma consequência do
"declínio” da função paterna?
Um
último destino do sujeito surgiu atualmente no campo do saber que é o da sua desconstrução. Este destino
funda um novo momento da filosofia, a que se chamou de pós- estruturalismo e que aborda a
morte do sujeito. Segundo alguns autores, essa possibilidade do sujeito inexistir teria
inaugurado o que se pode chamar de subjetividade pós-moderna.
Se
a transferência é o que move a prática analítica e se, para Lacan, a transferência é necessariamente uma relação do
sujeito com o saber (do Outro), então o sujeito pós-moderno (enquanto sujeito desaprisionado de um saber fixo) não seria
analisável.
Esta
lógica viria de encontro ao suposto e abordado " Declínio da psicanálise”
[20], declínio
este que Freud, no final de sua obra, já havia
previsto.
No
entanto, a psicanálise está mais viva do que nunca. Talvez isto venha ocorrendo
porque, ao considerar a articulação entre
sujeito e história, a psicanálise não faz outra coisa senão reiterar a responsabilidade do sujeito no
mundo atual.
Mas
em quê a psicanálise pode contribuir para modificar as formas contemporâneas do
malestar na cultura? Como modificar a
irresponsabilidade caracterizada pela ausência de sujeito na proposta da modernidade e
exemplificada pela posição da neurobiologia? Como restituir o lugar do sujeito, tal como aponta a
psicanálise, sem cair nos ideais questionados pela pós- modernidade?
Sendo
que a direção da subjetividade moderna é a tendência para o gozo, o analista
pode entender sua época a partir dos
novos semblantes que servem para distribuir este gozo.
No momento atual, com a queda
dos ideais, o discurso do amo está em crise. Em outros termos,
existe
uma fragmentação do amo que favoreceu o lugar privilegiado que hoje as drogas
encontram.
Quais
as consequências que o clínico pode retirar da tese de Lacan sobre
as toxicomanias?
O
interesse teórico que as toxicomanias têm para o psicanalista refere-se ao
problema de como
pode existir
uma ruptura com o gozo fálico sem que haja a foraclusão do Nome-do-Pai.
As
toxicomanias respondem a quase todos os quesitos da chamada pós-modernidade:
por um lado, ignoram parâmetros (o
ideal) e, com isso, intensificam o individualismo e, por outro, não estão mediadas pela palavra.
Este
fato poderia aproximar as toxicomanias a uma condição discursiva, cuja demanda
de completude objetal (decorrente
do discurso capitalista) impõe um modo de gozo. Se assim for, o analista, além de abordar o
toxicômano, também compromete-se em abordar as toxicomanias como um modo de gozo decorrente
do efeito discursivo.
Por
isso, além da questão teórica da remissão dos efeitos danosos que as
substâncias
produzem, as
toxicomanias, tal qual elas se apresentam hoje, ensinam ao analista, um dos modos atuais da relação do
sujeito com o saber. As toxicomanias se apresentam como efeitos da causação discursiva do
sujeito, o que abre ao analista uma perspectiva e uma responsabilidade de comentar o
social.
O
campo das toxicomanias é amplo e diversificado, pois, clinicamente, não é a
mesma coisa
atender um
heroinômano e um usuário de auasca, ou um alcoólatra e um usuário de canabis.
Da mesma forma requer recursos
diferentes atender uma dependência ou uma abstinência.
Do
ponto de visa teórico, o analista deve se questionar quais são as características
do funcionamento subjetivo do
objeto droga, quais suas consequências na transferência e qual o manejo que ela exige.
Enfim,
para responder ao desafio colocado pelas toxicomanias, o analista - ele mesmo
também um produto da modernidade - deve
avançar, assim como o inconsciente avança.
[1]
Décima versão
da Classificação Internacional das Doenças.
[2]
G. Sissa.
Ell placer y el mal - Filosofía
de la droga. Buenos
Aires, Ed. Manantial, 1998.
[3]
A. Escohotado. O
livro das drogas - Usos,
abusos, desafios e preconceitos, S.P., Ed. Dynamis, 1997.
[4]
M.
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in L.
Bittencourt (org.), A vocação do êxtase,
R.J., Ed. Imago, 1994.
[5]
H. Thomas e P. Roig. Reaprendendo
com a drogadição , S.P., Ed. Empório
do Livro, 1998.
[6]
J. Lacan.
Discours pendant la séance de clôture, Journées des cartels del'École
freudienne de Paris, Lettres de
l'Ecole freudienne, n° 18, pp.263-270, 1976.
[7]
J. Lacan. De nossos
antecedentes, in Escritos,
R.J., Ed. Jorge Zahar, 1998.
[8]
J. Lacan. A
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[9]
S. Askofaré. O
sintoma social, in R. Goldenberg (org.), Goza! - Capitalismo, Globalização, Psicanálise,
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1997.
[10]
Op.cit .
[11]
C. Soler.
Síntomas. Bogotá, Ed. Asociación
del Campo de Colombia, pp.65-82, 1997.
[12]
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A toxicomania generalizada e o empuxo ao esquecimento, in Revista Opção Lacaniana, n°22,
pp. 81-85,
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[13]
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[14]
S. Askofaré. O sintoma
social, in R. Goldenberg (org.), Goza! - Capitalismo, Globalização, Psicanálise,
B.A, Ed. Ágalma,
1997.
[15]
Lacan. A ciência
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Zahar, 1998.
[16]
J. Lacan Livro III,
Seminário As psicoses, R.J., Ed. Jorge Zahar, 1985.
[17]
J. Lacan. Livro XVI, Seminário
De um outro ao Outro, inédito.
[18]
J.-L. Gault. Por uma
epistemologia lacaniana, in Lacan, você
conhece?, S.P., Ed. Cultura,
1998.
[19]
P. Anderson. As origens
da pós-modernidade. R.J., Ed. Jorge Zahar, 1999.
[20]
Rojas e S. Sternbach. Entre dos
siglos - Una lectura
psicoanalítica de la posmodernidad. Buenos
Aires, Lugar
Editorial, 1997.
[21]
A.C.-Sponville e L. Ferry. A sabedoria
doso modernos - Diez
preguntas para nuestro tiempo, Barcelona, Ed. Península,
1998.
[22]
N.J. Carlisky,
C.K. Eskenazi e M.
Kijak. Vivir sin Proyecto. Buenos Aires, Ed. Lumen,
1998.
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